O limite entre arte, história e vida em um país colonizado
Por Aline Herscovici Carlos Eduardo Carvalho
Laurianne Marie Schippers Mariana Rodrigues
![Helio Oiticica](https://conteudo.imguol.com.br/blogs/74/files/2015/09/Helio-Oiticica.jpg)
Obra "O Grande Núcleo" (1960) de Hélio Oiticica. Retrospectiva sobre artistas brasileiros no MMK Museum für Moderne Kunst Frankfurt/ Main, Alemanha, 2013-2014.
Em Um azar histórico: desencontros entre moderno e contemporâneo na arte brasileira [1], o crítico de arte Rodrigo Naves busca respostas a esta questão e tece sensíveis considerações a respeito do percurso traçado pelo campo artístico do país, enfocando a conturbada transição da arte moderna para a arte contemporânea, difundida entre os anos 1950 e 1990. De tal forma, sua análise procura problematizar fundamentalmente o quão restrita é a realidade artística do Brasil, evidenciando a expressiva influência externa na criação e na avaliação crítica da arte brasileira.
Naves parte de um panorama histórico em que se afloram contradições agudas, com efeitos não só para o Brasil, mas em escala mundial. Com a globalização, o encurtamento das distâncias geofísicas fragiliza e deteriora as relações humanas e flexibiliza as fronteiras entre realidade e representação, ator e personagem, vida e arte. A obra do artista ganha liberdade para expandir seus limites estéticos, mas ao mesmo tempo se vê presa à ética do frenesi e da massificação ou industrialização da cultura em uma sociedade consumista e moralmente supérflua, assim definida desde a Escola de Frankfurt.
Frente a esta espécie de mercantilização da vida, a tese central do autor é que a ênfase do valor de mercado e a submissão da arte brasileira a parâmetros externos ao seu contexto acabam por desmerecer todo o processo de formação das obras nacionais e restringem ainda mais esse campo de produção ao enfatizarem certos artistas – que ecoam seus valores – em detrimento de outros.
Aqui, a análise da escritora Luciana Trigo converge com a de Rodrigo Naves:
"Por um lado, existe uma justificada euforia com o crescimento do mercado e do interesse pela produção contemporânea, alimentada, no caso brasileiro, pela assimilação de novos artistas ao circuito internacional. Por outro lado, existe também uma sensação generalizada de mal-estar diante desta mesma produção, caracterizada por um suposto pluralismo, pela falta de rumos claros, pela desambição e, principalmente, pela aliança incondicional dos artistas com as instituições e o mercado."[2]
Eis o paradoxo ideológico que impulsiona a reflexão do autor para as tensões criadas entre o moderno e o contemporâneo na história da arte brasileira. Certamente há na arte resquícios da dialética da própria vida. A questão é: seriam então a mesma coisa?
Sem a pretensão de absolutizar respostas, Naves começa introduzindo o ideal de arte moderna no que tange às coleções privadas e à sua publicidade na atualidade, sinal de expressiva valorização das artes brasileiras, sem a tentativa de evidenciar o caráter nacionalista de tais obras como fez a Semana de 1922.[3] O autor intenciona, ao contrário, desconstruir a ideia de que há apenas um modelo de arte, entendendo que as obras são influenciadas pelo seu tempo e contexto de produção e que não há uma linearidade nem uma universalidade na história da arte[4].
Até os anos 1970, diz o autor, a produção artística era pouco visível e, portanto, pouco avaliada. Os artistas de 22 ainda ditavam os parâmetros na área, preocupados em reformular uma identidade brasileira. A partir de 1950, surgem "obras que aos poucos constituíam um solo artístico cuja densidade e diversidade eram até então desconhecidas no país" (p. 7), claramente uma iniciativa de quebra dos ditames na arte brasileira. Na década de 1960, a busca por "maior visibilidade cultural" leva os artistas a se engajarem na programação de exposições, como a Opinião 66 e as três Bienais realizadas em São Paulo, o que, além de trazer a influência norte-americana para o país (através do expressionismo abstrato, do minimalismo e da arte pop), ainda consolidou a experiência artística em solo brasileiro, permitindo que novos artistas compreendessem e tomassem por referência aqueles que os antecederam.
Todavia, embora reconheça uma melhora na visibilidade e no alcance da produção artística, Naves critica a existência de poucos espaços e instituições para sua divulgação, afirmando tratar-se de um ambiente "provinciano e altamente restrito" (p. 10). Sem um espaço estruturado, diz, não é possível transmitir a devida mensagem desejada pelas artes, o que limita sua visibilidade. Assim também pensa a autora Daniela Castro, segundo a qual "nos últimos anos, ela [a arte] tem perdido o jogo como um "bem público" da vida social para se tornar um "ótimo negócio" dos interesses privados"[5].
Neste quesito, no entanto, houve uma singela melhora em comparação ao período estudado pelo texto de Naves: hoje, existem diversas oportunidades de experiências culturais, inclusive gratuitas (como exposições no metrô de São Paulo, incentivadas por páginas em redes sociais como a "Catraca Livre", do Facebook), ainda que concentradas nos grandes centros urbanos. Seu público é predominantemente leigo, não perito. Assim, os espaços, mesmo que públicos, têm mais uma ética comercial do que fins lucrativos, buscando atrair o máximo de espectadores possível.
Contudo, há por vezes pouco interesse em frequentar estes ambientes, quanto mais em compreender historicamente o que está sendo veiculado e representado. Já disse Pierre Bourdieu que "é o olhar do esteta que constitui a obra de arte como tal (…) [pois] é ele próprio o produto de uma longa convivência com a obra de arte"[6]. Talvez isto ainda esteja em falta.
Mas ao final dos anos 1980, "passou-se então a avaliar a arte moderna brasileira segundo o fluxo e refluxo das tendências dominantes em certo momento nos grandes centros culturais" (p. 10), contrárias à busca da "pureza" moderna e do chamado formalismo (associado ao elitismo, etnocentrismo, aristocratismo, conservadorismo etc). Foi justamente este contexto de influências externas (como a arte pop, o minimalismo e a arte povera) que proporcionou visibilidade e valorização à arte de Lygia Clark e de Hélio Oiticica – grande exemplo da análise de Rodrigo Naves -, tidos como vanguardistas por "anteciparem" certos valores contemporâneos. O autor irá, contudo, problematizar esta visão de linearidade na história da arte:
"um finalismo que interpreta a história da arte de frente para trás, privilegiando assim as obras de arte modernas que desembocariam na arte contemporânea, e numa arte contemporânea oposta a características fundamentais da arte moderna." (p. 16)
Presume-se, em outras palavras, que a arte contemporânea seja uma consequência inevitável da arte moderna e que as características de cada uma sejam contrastantes e estanques. O que o autor propõe, e fundamenta exaustivamente, é uma fluidez, uma dinamicidade ligada a contextos locais. A tensão entre vida e arte não é exclusiva da arte contemporânea, assim como a busca pela autonomia da arte não o é da arte moderna.
Mais do que isso, uma característica específica não é evolução nem involução da outra; logo, não há sentido em supervalorizar os trabalhos de Oiticica e Clark em detrimento dos demais da época – ainda mais considerando "parâmetros estranhos à sua formação" para avaliar a produção cultural nacional. Assim, Naves questiona a solidez do argumento de que Lygia Clark e Hélio Oiticica aproximam arte e vida de maneira estrita considerando que, por vezes, suas obras apresentam características da arte moderna, dando um passo em direção à ideia de autonomia da obra de arte.
Ao fim e ao cabo, há, certamente, uma relação inabalável entre história e arte. A arte é histórica e a história traz subsídio à produção artística. A arte reflete a vida, que é matéria-prima para o artista. No Brasil, diz Naves, isso é ainda mais acentuado frente à dependência externa. Talvez isto explique a força da arte brasileira no processo de construção de identidade nacional.
No entanto, é importante desnaturalizar a ideia de que a história (e, portanto, a arte) segue uma linearidade rumo a um suposto progresso, estratificando as escolas artísticas em uma régua de avaliação gradativa. Não há evolução cultural ou finalismo na produção artística. No mundo – e, mais, no Brasil – de hoje, onde a discussão em torno dos critérios de apreciação da arte é tão grande, esta concepção parece ainda mais indispensável, até em respeito à arte brasileira como projeto de libertação do país e de afirmação de sua própria individualidade cultural e política.
Edição Filipe Dal'Bó
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