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GV CULT - Criatividade e Cultura

O limite entre arte, história e vida em um país colonizado

GVcult

30/09/2015 09h46

Por         Aline Herscovici          Carlos Eduardo Carvalho

                         Laurianne Marie Schippers         Mariana Rodrigues

Helio Oiticica

Obra "O Grande Núcleo" (1960) de Hélio Oiticica. Retrospectiva sobre artistas brasileiros no MMK Museum für Moderne Kunst Frankfurt/ Main, Alemanha, 2013-2014.

Em Um azar histórico: desencontros entre moderno e contemporâneo na arte brasileira [1], o crítico de arte Rodrigo Naves busca respostas a esta questão e tece sensíveis considerações a respeito do percurso traçado pelo campo artístico do país, enfocando a conturbada transição da arte moderna para a arte contemporânea, difundida entre os anos 1950 e 1990. De tal forma, sua análise procura problematizar fundamentalmente o quão restrita é a realidade artística do Brasil, evidenciando a expressiva influência externa na criação e na avaliação crítica da arte brasileira.

Naves parte de um panorama histórico em que se afloram contradições agudas, com efeitos não só para o Brasil, mas em escala mundial. Com a globalização, o encurtamento das distâncias geofísicas fragiliza e deteriora as relações humanas e flexibiliza as fronteiras entre realidade e representação, ator e personagem, vida e arte. A obra do artista ganha liberdade para expandir seus limites estéticos, mas ao mesmo tempo se vê presa à ética do frenesi e da massificação ou industrialização da cultura em uma sociedade consumista e moralmente supérflua, assim definida desde a Escola de Frankfurt.

Frente a esta espécie de mercantilização da vida, a tese central do autor é que a ênfase do valor de mercado e a submissão da arte brasileira a parâmetros externos ao seu contexto acabam por desmerecer todo o processo de formação das obras nacionais e restringem ainda mais esse campo de produção ao enfatizarem certos artistas – que ecoam seus valores – em detrimento de outros.

Aqui, a análise da escritora Luciana Trigo converge com a de Rodrigo Naves:

"Por um lado, existe uma justificada euforia com o crescimento do mercado e do interesse pela produção contemporânea, alimentada, no caso brasileiro, pela assimilação de novos artistas ao circuito internacional. Por outro lado, existe também uma sensação generalizada de mal-estar diante desta mesma produção, caracterizada por um suposto pluralismo, pela falta de rumos claros, pela desambição e, principalmente, pela aliança incondicional dos artistas com as instituições e o mercado."[2]

Eis o paradoxo ideológico que impulsiona a reflexão do autor para as tensões criadas entre o moderno e o contemporâneo na história da arte brasileira. Certamente há na arte resquícios da dialética da própria vida. A questão é: seriam então a mesma coisa?

Sem a pretensão de absolutizar respostas, Naves começa introduzindo o ideal de arte moderna no que tange às coleções privadas e à sua publicidade na atualidade, sinal de expressiva valorização das artes brasileiras, sem a tentativa de evidenciar o caráter nacionalista de tais obras como fez a Semana de 1922.[3] O autor intenciona, ao contrário, desconstruir a ideia de que há apenas um modelo de arte, entendendo que as obras são influenciadas pelo seu tempo e contexto de produção e que não há uma linearidade nem uma universalidade na história da arte[4].

Até os anos 1970, diz o autor, a produção artística era pouco visível e, portanto, pouco avaliada. Os artistas de 22 ainda ditavam os parâmetros na área, preocupados em reformular uma identidade brasileira. A partir de 1950, surgem "obras que aos poucos constituíam um solo artístico cuja densidade e diversidade eram até então desconhecidas no país" (p. 7), claramente uma iniciativa de quebra dos ditames na arte brasileira. Na década de 1960, a busca por "maior visibilidade cultural" leva os artistas a se engajarem na programação de exposições, como a Opinião 66 e as três Bienais realizadas em São Paulo, o que, além de trazer a influência norte-americana para o país (através do expressionismo abstrato, do minimalismo e da arte pop), ainda consolidou a experiência artística em solo brasileiro, permitindo que novos artistas compreendessem e tomassem por referência aqueles que os antecederam.

Todavia, embora reconheça uma melhora na visibilidade e no alcance da produção artística, Naves critica a existência de poucos espaços e instituições para sua divulgação, afirmando tratar-se de um ambiente "provinciano e altamente restrito" (p. 10). Sem um espaço estruturado, diz, não é possível transmitir a devida mensagem desejada pelas artes, o que limita sua visibilidade. Assim também pensa a autora Daniela Castro, segundo a qual "nos últimos anos, ela [a arte] tem perdido o jogo como um "bem público" da vida social para se tornar um "ótimo negócio" dos interesses privados"[5].

Neste quesito, no entanto, houve uma singela melhora em comparação ao período estudado pelo texto de Naves: hoje, existem diversas oportunidades de experiências culturais, inclusive gratuitas (como exposições no metrô de São Paulo, incentivadas por páginas em redes sociais como a "Catraca Livre", do Facebook), ainda que concentradas nos grandes centros urbanos. Seu público é predominantemente leigo, não perito. Assim, os espaços, mesmo que públicos, têm mais uma ética comercial do que fins lucrativos, buscando atrair o máximo de espectadores possível.

Contudo, há por vezes pouco interesse em frequentar estes ambientes, quanto mais em compreender historicamente o que está sendo veiculado e representado. Já disse Pierre Bourdieu que "é o olhar do esteta que constitui a obra de arte como tal (…) [pois] é ele próprio o produto de uma longa convivência com a obra de arte"[6]. Talvez isto ainda esteja em falta.

Mas ao final dos anos 1980, "passou-se então a avaliar a arte moderna brasileira segundo o fluxo e refluxo das tendências dominantes em certo momento nos grandes centros culturais" (p. 10), contrárias à busca da "pureza" moderna e do chamado formalismo (associado ao elitismo, etnocentrismo, aristocratismo, conservadorismo etc). Foi justamente este contexto de influências externas (como a arte pop, o minimalismo e a arte povera) que proporcionou visibilidade e valorização à arte de Lygia Clark e de Hélio Oiticica – grande exemplo da análise de Rodrigo Naves -, tidos como vanguardistas por "anteciparem" certos valores contemporâneos. O autor irá, contudo, problematizar esta visão de linearidade na história da arte:

"um finalismo que interpreta a história da arte de frente para trás, privilegiando assim as obras de arte modernas que desembocariam na arte contemporânea, e numa arte contemporânea oposta a características fundamentais da arte moderna." (p. 16)

Presume-se, em outras palavras, que a arte contemporânea seja uma consequência inevitável da arte moderna e que as características de cada uma sejam contrastantes e estanques. O que o autor propõe, e fundamenta exaustivamente, é uma fluidez, uma dinamicidade ligada a contextos locais. A tensão entre vida e arte não é exclusiva da arte contemporânea, assim como a busca pela autonomia da arte não o é da arte moderna.

Mais do que isso, uma característica específica não é evolução nem involução da outra; logo, não há sentido em supervalorizar os trabalhos de Oiticica e Clark em detrimento dos demais da época – ainda mais considerando "parâmetros estranhos à sua formação" para avaliar a produção cultural nacional. Assim, Naves questiona a solidez do argumento de que Lygia Clark e Hélio Oiticica aproximam arte e vida de maneira estrita considerando que, por vezes, suas obras apresentam características da arte moderna, dando um passo em direção à ideia de autonomia da obra de arte.

Ao fim e ao cabo, há, certamente, uma relação inabalável entre história e arte. A arte é histórica e a história traz subsídio à produção artística. A arte reflete a vida, que é matéria-prima para o artista. No Brasil, diz Naves, isso é ainda mais acentuado frente à dependência externa. Talvez isto explique a força da arte brasileira no processo de construção de identidade nacional.

No entanto, é importante desnaturalizar a ideia de que a história (e, portanto, a arte) segue uma linearidade rumo a um suposto progresso, estratificando as escolas artísticas em uma régua de avaliação gradativa. Não há evolução cultural ou finalismo na produção artística. No mundo – e, mais, no Brasil – de hoje, onde a discussão em torno dos critérios de apreciação da arte é tão grande, esta concepção parece ainda mais indispensável, até em respeito à arte brasileira como projeto de libertação do país e de afirmação de sua própria individualidade cultural e política.

Edição     Filipe Dal'Bó

Alunos

[1] NAVES, Rodrigo. Um azar histórico: desencontros entre o moderno e o contemporâneo na arte brasileira. Revista Novos Estudos, Nᵒ 64. CEBRAP, 2002.
[2] TRIGO, Luciana. A grande feira: uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea, Ed. Civilização Brasileira, 2009, p. 17.
[3] COUTO, M. Do moderno e do contemporâneo da arte brasileira. Revista Porto Arte, v. 17. nᵒ 28, p. 111 – 121. Porto Alegre, 2010.
[4] Ou que, nos termos de Kandinsky, "cada época cria uma arte que lhe é própria e que nunca renascerá".
[5] CASTRO, Daniela. Um excelente negócio. Revista CartaCapital, 06 de fevereiro de 2013, p. 48.
[6] BORDIEU, Pierre. Excerto de O poder simbólico, Bertrand Brasil, 15a edição, pp. 285-286, 2011.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.