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GV CULT - Criatividade e Cultura

À beira de um centenário: a Semana de Arte Moderna de 1922

GvCult - Uol

03/08/2021 06h38

"Mario de Andrade I", 1922, Anita Malfatti /Cartaz da Semana de Arte Moderna, produzido por Di Cavalcanti/"A Estudante Russa", 1915, Anita Malfatti.

Por Bernardo Buarque de Hollanda

Nota explicativa: Não faltarão comemorações, eventos e reportagens em fevereiro do ano que vem. Já nos acostumamos desde a escola a ouvir falar da Semana de Arte Moderna de 1922, um dos eventos que sacudiu o cenário artístico brasileiro naquele ano efervescente. É claro que a memória do acontecimento tem sido construída desde então, de década em década. Podemos imaginar o clímax em 2022, quando se completam cem anos do evento cultural. Ao nosso modo, vamos aqui na coluna, relembrá-lo e começar a comemorar, de maneira antecipada, aquela festividade, que deixou marcas na história e na memória coletiva nacional.

A Semana de Arte Moderna de 1922 representa o marco simbólico inaugural do movimento modernista brasileiro, cujas origens remontam ao decênio anterior. A sua realização ocorreu nas dependências do Teatro Municipal de São Paulo, nas noites dos dias 13, 15 e 17 de fevereiro. O evento abrangeu uma série de atrações, desde a apresentação de danças, declamação de poesias, leitura de manifestos, até a exposição de pinturas e esculturas no saguão do teatro.

A concepção da festividade coube a um grupo de jovens artistas e escritores, residentes no Rio de Janeiro e em São Paulo, que se mostravam descontentes com os rumos das artes e das letras no Brasil. Entre os idealizadores e participantes da Semana, destacam-se os polígrafos Mário de Andrade e Oswald de Andrade, os poetas Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida, as pintoras Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, o pintor Di Cavalcanti, o crítico estreante Sérgio Milliet, o compositor Villa-Lobos, o escultor Victor Brecheret e o historiador Paulo Prado, entre muitos outros. A esses integrantes, somou-se a figura do veterano e renomado escritor Graça Aranha, que contava à época 53 anos e cujo prestígio intelectual contribuiu para a valorização do acontecimento.

A primeira noite da Semana de Arte Moderna, em 13 de fevereiro, atraiu um grande público, a fazer uma fila que serpenteava pelas ruas do centro de São Paulo. Os assistentes reagiram de início com espanto e repúdio às obras de Victor Brecheret e às telas de Anita Malfatti. Durante o espetáculo, foram proferidas as conferências de Ronald de Carvalho e Graça Aranha, ambas a respeito da dimensão estética do novo conceito de arte. A noite encerrou-se com a audição de três solos de piano de Ernani Braga e com a exibição de três danças africanas de Villa-Lobos.

A segunda noite do evento, em 15 de fevereiro, despertou a hostilidade de plateia que se manifestou com vaias e atitudes reativas irônicas. Após o discurso de Menotti Del Picchia, ilustrado com textos de Plínio Salgado e Oswald de Andrade, o público menoscabou os representantes modernistas, por meio da simulação de latidos e miados expressos em tom de pilhéria. Entre aqueles que desferiram gritos lancinantes contra os presentes no palco, estava o então estudante Antônio de Alcantara Machado, cuja adesão ao modernismo aconteceria poucos anos mais tarde, com o advento do movimento antropofágico (1928) e com suas publicações literárias. O festival prosseguiu com a crítica de Manuel Bandeira à métrica e à rima parnasianas, mediante a recitação do satírico Os sapos. No intervalo da apresentação, Mário de Andrade leu nas escadarias do teatro trechos de A escrava que não é Isaura.

A última noite, em 17 de fevereiro, transcorreu com a presença de um número menor de espectadores, que se comportavam, porém de forma mais comedida. O único momento de alvoroço da plateia aconteceu quando o maestro Villa-Lobos entrou em cena de casaca e chinelos. Tal irreverência gerou protesto e incompreensão entre os que assistiam ao concerto.

A finalidade precípua dos mentores da Semana de Arte Moderna foi o combate às formas tradicionais de composição, à herança passadista e às obras de talhe academizante, que se cristalizaram no país no final do século XIX e no início do século XX. Inspirados nas correntes de vanguarda da Europa, como o futurismo do italiano Marinetti e o dadaísmo do romeno Tristan Tzara, os modernistas procuravam desbaratar o ideal da arte pura e a posição elitista do intelectual brasileiro na sociedade.

A ruptura iracunda com os cânones literários e com os padrões estilísticos convencionais era, pois, o imperativo da geração de 22. Em lugar dos modelos estabelecidos, os expoentes da Semana preconizavam a liberdade de expressão, a adoção do verso livre, a aproximação com os temas da vida cotidiana e a introdução da fala própria do ser brasileiro, com vistas a superar os empecilhos impostos pelas regras gramaticais e ortográficas da língua portuguesa.

A compreensão do significado da Semana no primeiro quartel do século XX passa também pelo exame das transformações de ordem histórica, social e cultural ocorridas no Brasil e no mundo. Do ponto de vista internacional, a Europa atravessava nos primeiros decênios do século passado um período de acentuada euforia racionalista. O desenvolvimento tecnológico e o progresso científico constituíram a pedra de toque do sistema econômico capitalista.

Após uma fase de intensas mudanças, o advento da Grande Guerra (1914-1918) e a eclosão da Revolução Russa de 1917 arrefeceram o otimismo irrestrito. Com a destruição dos países beligerantes, esboroaram-se no continente europeu algumas ilusões acerca da onipotência da razão. No âmbito artístico, a Europa acompanhou as alterações históricas com a irrupção de diversas correntes estéticas. Dentre elas, vale mencionar o futurismo, o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo e o surrealismo.

Tais vanguardas visavam a interpretação da realidade sob novos ângulos e sob novas explorações pictóricas, rítmicas e sinópticas. Por um lado, tendências como o futurismo exaltavam os valores da vida moderna e as conquistas hauridas da técnica. Por outro lado, tendências como a dadaísta apregoavam a ausência de perspectivas da humanidade diante da guerra. Já o surrealismo afiançava a fuga da racionalidade, a penetração no mundo interior e a ênfase no inconsciente.

Em termos nacionais, São Paulo e Rio de Janeiro eram os centros urbanos mais avançados, que assistiam a uma incipiente industrialização e à emergência do proletariado. A classe operária em São Paulo ganhava corpo também pelo fato de o país receber uma grande massa de imigrantes, especialmente de italianos, que ajudavam a fomentar as primeiras greves operárias. Em 1922, ocorre no Rio de Janeiro o incidente dos Dezoito do Forte de Copacabana, quando jovens oficiais militares indispõem-se contra o governo e contra a estrutura oligárquica da Primeira República.

No mesmo ano, é fundado o Partido Comunista do Brasil (PCB). No plano artístico nacional, é possível identificar os sinais precursores que antecederam a Semana. Em 1912, Oswald de Andrade regressa da Europa, após travar contato com espíritos inovadores que lançavam manifestos em prol do futurismo. Em 1913, o pintor russo Lasar Segall faz uma mostra de quadros no Brasil. Em 1917, Oswald e Mário de Andrade conhecem-se no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. No mesmo ano, Anita Malfatti, após estudar na Alemanha, expõe pela segunda vez suas pinturas, drasticamente rejeitadas pelo escritor e editor Monteiro Lobato, em seu artigo polêmico Paranoia ou mistificação?

Em 1920, o grupo de modernistas descobre o escultor Victor Brecheret. No ano seguinte, Mário publica Pauliceia desvairada e ataca o ambiente literário oficial, mormente os artífices do parnasianismo, como Olavo Bilac.

Após a rumorosa Semana, os seus membros foram-se ramificando e espargindo em torno de distintas vertentes de pensamento, no decorrer dos anos 1920. Os jovens artistas deram início à primeira fase do modernismo, com a promoção de grupos, revistas, manifestos e viagens ao interior do Brasil. A revista Klaxon foi o primeiro periódico a circular, já no ano de 1922. A seguir, surgiu a revista Estética, no Rio de Janeiro, sob os auspícios  de Prudente de Moraes Neto e Sérgio Buarque de Holanda.

Em 1924, Oswald redigiu o manifesto Pau-Brasil. Dois anos depois, Cassiano Ricardo, Plínio Salgado e Menotti Del Picchia criam as bases do Verde-Amarelismo, cuja marca era o nacionalismo primitivista e chauvinista. Em 1928, vem a lume a Revista de Antropofagia, dirigida por Raul Bopp e Antônio de Alcântara Machado. Assim sendo, "o brado coletivo principal", tal como Mário de Andrade classificou a Semana, projetou o movimento modernista sobre o cenário artístico e cultural brasileiro, ao longo das décadas que se seguiram à sua realização.

Para quem quiser saber mais sobre o movimento, recomendo ao menos quatro referências:

– ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1942.

– ANDRADE, Oswald de. Estética e política. São Paulo: Editora Globo, 1992.

– ARANHA, Graça. Obra completa. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1968.

– BRITO, Mário da Silva. História do modernismo: antecedentes da Semana de Arte moderna. São Paulo: Saraiva, 1958.

Edição Final: Guilherme Mazzeo

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.