As palavras em Estorvo: 30 anos de um livro
Por Bernardo Buarque De Hollanda
No início da década de 1990, Chico Buarque surpreendeu o meio literário com o lançamento de Estorvo. A surpresa seria sucedida não apenas por essa publicação, mas por uma série romanesca que se prolongaria nos últimos trinta anos, fruto de um projeto autoral mais ambicioso no terreno da ficção. O livro, apesar de arrebatar o Prêmio Jabuti, dividiu opiniões. No mais das vezes, o leitor comum, no afã de encontrar o compositor musical, decepcionou-se com o narrador literário. À unanimidade da música, correspondeu algum ceticismo e certo estranhamento diante da literatura buarqueana.
Em contrapartida, no terreno da crítica, um dos mais percucientes intérpretes à época da aparição do livro foi o filósofo paraense Benedito Nunes. Em chave positiva, o texto para o jornal Folha de São Paulo, publicado em 03 de agosto de 1991, identificou a "mascarada trágica" de um narrador que vivenciava um "presente alucinatório" e uma "existência fantasmal". No fecho do breve, mas denso artigo, o saudoso crítico Benedito Nunes concluía com considerações em torno do peso daquele pesadelo que escapava à etiqueta das classificações literárias – novela, conto, romance –, constituindo uma "esplêndida e angustiante parábola".
A sensação de leitura descrita por Benedito ecoou em mim. Tinha então dezessete anos e a expectativa de adentar a ficção era enorme. Mais do que a trama narrativa em si, guardo a lembrança do maravilhamento com a construção das frases e com as palavras empregadas no livro, a começar por aquela que intitulava a obra. No decorrer da leitura, minha atenção buscava identificar a que empecilho tal "estorvo" aludia. Por suposto, logo me dissuadi da esperança vã de encontrar uma resposta objetiva. Era evidente que não se tratava de um objeto palpável, mas de um sentimento humano mais desconfortável e inefável que, de forma naïf, um pré-universitário imaginava encontrar enunciado.
Narrado em primeira pessoa, o livro é um profundo diálogo cerebral do autor consigo próprio. Seu impressionismo evoca uma visão embaçada do real. É como se as pessoas devaneassem ao seu redor, orbitando em torno do "eu" do narrador. Este dá a sensação onírica de ser levado pelos acontecimentos todo o tempo. Eis um ser passível de ser conduzido ao leu, sem rumo, numa vida que flana sem sentido, difusa e confusa. A narrativa vagueia sem saber o que faz e por que age. Sobretudo carece de saber o que quer e o que tem. Sequer compreende se possui ou se controla a si próprio.
Destarte, a personagem encontra-se como que sozinha no mundo. O ser humano é seu maior estranho. Até mesmo as pessoas mais próximas do enredo – mãe, irmã, ex-mulher, amigo – desprezam-no pelo fato de ser diferente, esguio, com atitudes incompreensíveis aos outros. A identidade é o próprio estorvo e se coloca de maneira duvidosa: é o narrador? São os personagens ao redor? São as relações humanas em geral? Há sensação de pequenez e isolamento diante de um mundo tão hostil quanto absorvente. Volvendo às reminiscências de leitura de três décadas passadas, tenho pra mim a lembrança de uma experiência difícil, mas recompensadora, o que vem expressos nos grifos de leitura guardados no exemplar de época.
Da mesma maneira que fizemos com Euclides da Cunha, Guimarães Rosa e Gabriel Garcia Marques, homenagearemos os trinta anos de Estorvo com transcrição de frases emblemáticas e de efeito, pinçadas aqui e ali na narrativa:
– "…como um nome que de pronto brilha na memória, mas não podemos ler porque as letras se mexem". (p. 15)
– "…ele pensa que os olhos dela cheiram a canela". (p. 20)
– "…sua palma cheia de vincos emaranhados…" (p. 32)
– "… um esgar contra o sol". (p. 34)
– "…os espaços da paixão com a massa daquele olhar" (p. 45)
– "Oblíquo, o sobrado verde-musgo comparece no final da rua repleta de construções modernas" (p. 45)
– "Sob a luz elétrica, a pele do menino é ainda mais pálida, vidrosa". (p. 52)
– "Estiou, um sol rasante percorre o asfalto" (p. 52)
– "E Benjamin deveras contempla aquela trança de pernas, aquelas polpas que às vezes lhe parecem uma ninhada na bacia de Ariela" (p. 85)
– "…nas almofadas do seu rosto desenha-se como que uma renda de finas veias". (p. 86)
– "Porém, aos olhos de Ariela aqueles dois homens são tão contrastantes, que o pensamento de Jeovan pode ajudá-la a melhor enxergar Benjamin Zambraia". (p. 86)
– "Benjamin entra num florista, atraído por uma cascata de flores do campo…" (p. 92)
– "…naquele instante Benjamin assistiu ao que já esperava: sua existência projetou-se do início ao fim, tal qual um filme na venda dos olhos".
– "Mas a curiosidade é mesmo feita do que já se conhece com a imaginação".
– "…as costelas saltadas no flanco feito um teclado…".
– "… a noite é superior ao dia. E que quando amanhece, não é o dia que nasce no horizonte, é a noite que se recolhe no fundo do vale".
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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