Catar 2022, um novo capítulo da geopolítica das Copas do Mundo
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Quando a coluna deste mês for publicada, em princípios de 2023, grande parte das atenções da opinião pública terá arrefecido seu interesse pela Copa do Mundo do Catar. Qualquer que seja o resultado em campo, outras pautas, supostamente mais "nobres" e importantes que uma competição de futebol, tais como economia, política, guerra, terão capturado as atenções do noticiário internacional. Essa é, aliás, uma característica do "presentismo" e da dinâmica midiática no século XXI: a vivência intensa e concentrada de um fenômeno, rapidamente sucedido por outro, que lega o anterior ao ostracismo e ao esquecimento.
Não obstante, o interregno de um mês do torneio internacional da FIFA, realizado em período excepcional, durante o inverno europeu de final do ano de 2022, em virtude da geografia e do clima do país-sede, o minúsculo e desértico enclave do Golfo Pérsico, tem a capacidade cíclica de reativar o imaginário concorrencial por meio do nacionalismo esportivo. À maneira das antigas Exposições universais, tal torneio faz revivescer o desfile e o concurso simbólico das nações, em pleno século XXI. Estas, como se sabe, reinventaram os esportes modernos na virada para o século XX, graças ao advento dos Jogos Olímpicos de 1896, concebidos pelo Comitê Olímpico Internacional e pelo aristocrático Barão Pierre de Coubertin. Durante o entreguerras, ao final dos anos 1920, as Olimpíadas dão origem a uma dissidência que engendra, por sua vez, as Copas do Mundo de futebol.
O invento se revela progressivamente bem-sucedido, sendo organizado pela FIFA, outra agência francófona, encarnada na figura Jules Rimet, figura capital desse cenário na primeira década do século XX. A competição é moldada em meio às controvérsias do cisma amadorismo-profissionalismo, em fins dos anos 1920 e início da década de 1930. Os gestores do futebol aderem à vertente profissional, enquanto as modalidades atléticas do olimpismo mantêm-se aferradas ao etos amador. Tal contraponto fixa-se no próprio calendário esportivo do pós-Segunda Guerra, com a cristalização da periodicidade de quatro anos e a alternância intervalar entre as Olimpíadas do COI e os Mundiais da FIFA. As duas instituições, também é consabido, se acantonam na Suíça, em busca de refúgio às vicissitudes bélico-políticas das grandes potências e de certa proteção na gestão de suas finanças, cujo crescimento se exponencia dos anos 1970 em diante.
A maior porosidade do futebol às injunções do capital na mediação, na regulação e na organização de um evento de porte internacional não deixa de produzir exceções interessantes do ponto de vista da lógica do capitalismo. Afinal, a pátria capitalista emergente por excelência do século XX, os Estados Unidos, após duas participações pontuais nos torneios da FIFA, em 1930 e 1950, não produz uma sociedade interessada nesse esporte nem uma equipe com qualidade capaz de se destacar, afora um ou outro imigrante, como o futebolista semiprofissional, de origem haitiana, Joe Gaetgens.
Os EUA só reaparecem no cenário geopolítico do torneio nos anos 1990, com influência suficiente para avocar a si a responsabilidade da realização de uma Copa. De forma tardia, entram em cena, com o objetivo de alterar o tradicional eixo gravitacional do futebol – a díade Europa/América do Sul. Com efeito, tencionavam popularizar o soccer em seu país, mesmo que sob a improvisação de estádios de beisebol e de futebol americano para o Mundial de 1994.
Outra sorte de exceção na linguagem e na prática do nacionalismo futebolístico, gerido pela francófona FIFA, foi o distanciamento político da Grã-Bretanha, berço da modernidade esportiva desde o século XIX. A ausência inicial só é reconciliada em meados da década de 1950, com a eleição de Stanley Rous, ex-juiz inglês, à testa da FIFA, perdurando no poder até os idos de 1970. Assim, se as Olimpíadas refletem o mundo bipolar e dramatizam na Guerra Fria a concorrência por medalhas entre americanos e soviéticos, a clivagem das Copas do Mundo passa pela rotatividade de conquistas alternadas entre europeus e sul-americanos.
Mesmo em termos de controle institucional, a dinâmica de representação continental gera diferenças entre os dois lados do Atlântico. De um lado a Conmebol, representação do futebol na América do Sul criada já nos anos 1910, para a realização de seu Campeonato Sul-Americano; de outro, a UEFA, cujo surgimento remonta ao decênio de 1950, o que permite ao continente europeu o início da estruturação de campeonatos de clubes e de nações, processo histórico reconstituído em fontes primárias por investigação densa e original do historiador suíço Philippe Vonnard (2018).
O tabuleiro do poder esportivo é colocado de ponta-cabeça em meados dos anos 1970, quando um dirigente brasileiro, João Havelange, articula pela primeira vez uma candidatura não-eurocêntrica à sucessão da presidência da entidade. Amparado nos votos dos países representantes de Ásia, África e Américas, após todo um trabalho de diplomacia esportiva, o então presidente da CBD – acrônimo para Confederação Brasileira de Desportos – vence as eleições na FIFA e destrona a hegemonia anglo-saxã de Rous e a gaulesa de Rimet.
Embora muito se fale na inflexão capitalista da Federação desde então, o contexto anterior, que criou as condições para tais mudanças e que levou à vitória de Havelange, foi analisado com argúcia por dois jovens pesquisadores. Um é o historiador brasileiro Luiz Burlamaqui, em tese defendida na USP, publicada em livro com versões em português e inglês (2022), que se debruça sobre a eleição como "ponto de chegada", mais do que como "ponto de partida" da Era Havelange.
Outro trabalho de folego é de autoria do pesquisador Clément Astruc (doutor em História/IHEAL, 2022), que explora com originalidade a difusão da imagem do futebol brasileiro no pós-Segunda Guerra não apenas circunscrito à performance vitoriosa da Seleção nas Copas (1958, 1962 e 1970), mas em função das excursões dos clubes de Pelé e Garrincha, Santos e Botafogo respectivamente, circulação que conecta uma série de relações diplomáticas da política externa brasileira nos anos 1960 e 1970, cujo capital político vai ser muito bem aproveitado por Havelange na sua guinada à presidência.
O ciclo presidencial desse personagem estende-se de 1974 a 1998 e assiste a um fortalecimento monopolístico e a uma expansão vertiginosa da entidade. De modo um tanto paradoxal, é Havelange, o representante "terceiro-mundista", quem mais aprofunda a conversão da Copa em espetáculo comercial e em produto mercantil, apropriado pelas empresas de televisão e pelas corporações de patrocinadores.
Ao término de seu mandato, o agigantamento institucional contempla o ditado segundo o qual a FIFA possui mais países afiliados que a ONU. As dezesseis equipes participantes desde 1930 passam, em 1982, para 24 e, em 1998, para 32 países participantes, de modo a tornar o evento esportivo em um espetáculo ainda representativo dos diversos quadrantes do globo.
Em síntese, outro "legado" da Era Havelange – e aqui nos aproximamos do caso do Catar 2022 – é o fim do revezamento entre a Europa ocidental e a América do Sul na hospedagem da Copa. Embora, por suposto, não se possa atribuir a vontade de um agente exclusivo um processo cujos fundamentos são sistêmicos e estruturais, tal dirigente encarnou o espírito expansionista da entidade. O brasileiro sai da Federação apenas em 1998, após quase duas décadas e meia à frente, já com a decisão tomada de escolha da Copa seguinte em um país do Oriente. Tal edição vai ser afinal dividida entre duas candidaturas, algo inédito na organização do torneio, dada a mobilização nacional acionada pelos dois países: o Japão e a Coréia do Sul.
Havelange deixa o poder, acirra seu etos mercantil e ainda elege seu sucessor, o secretário-geral da FIFA, Joseph Blatter, ex-jogador do minúsculo time suíço Neuchâtel Xamax. Os últimos vinte anos (2002-2022) intensificam a agenda expansionista, com a missão de alargar latitudes e de atingir novas fronteiras geográficas atrativas para os interesses financeiros desta governing body.
Isso se concretiza com a realização de uma Copa na Ásia (2002) e outra na África (2010). Passa ademais pela aposta nas nações emergentes dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e Rússia), que na primeira década do século XXI apresentavam condições político-econômicas atraentes e rentáveis para hospedar um Mundial. Era agora necessário um país cujo Estado tivesse capacidade financeira para a edificação a um só tempo de uma infraestrutura com equipamentos esportivos, urbanos e turísticos.
Não obstante, nesse entretempo, meados de 2010, há reveses no projeto de monopólio de poder, que extravasa as tensões internas de disputa e adquire dimensão pública. Este consistiu na reação do mundo anglo-saxão, com o desencadeamento do FIFAgate, em processo investigativo coordenado pelo FBI estadunidense. Nele, são trazidos à tona escândalos de corrupção, de compra de votos e de transações obscuras de agentes do meio – presidentes de confederações, empresas patrocinadoras, etc. –, o que inclui a escolha do Catar como país-sede.
A intensidade das acusações gera danos conjunturais. A dupla Blatter-Jérôme Valcke, respectivamente presidente e secretário-geral, é destituída da cúpula da FIFA, dirigentes de confederações e proprietários de marcas esportivas são presos ou investigados. As investigações – uma das versões atribui retaliação de Inglaterra e Estados Unidos à recusa da entidade para que sediassem as Copas de 2014 e 2022 – provocam certo abalo sísmico no poder do futebol, ainda que não a ponto de comprometer sua estrutura. O italiano Gianni Infantino é conduzido à testa da FIFA e mantém seu caráter eurocêntrico de dominação e de aprofundamento do projeto de expansão.
Todas as suspeições na escolha do Catar não são suficientes para a revisão da decisão pelo novo mandatário. Trata-se de um país tão pequeno quanto a ilha caribenha da Jamaica, com dois milhões de residentes, dos quais apenas trezentos mil são cidadãos, sendo os demais imigrantes, voltados ao trabalho subalterno. O território enquista-se entre duas nações fortes em termos geopolíticos: a Arábia Saudita e o Irã. O tamanho geográfico diminuto não compromete sua condição de superpotência econômica, uma vez que é um dos principais produtores de gás natural liquefeito do mundo, estratégico, portanto, em tempos de crise energética aguçada pela guerra russa na Ucrânia. Nos últimos vinte anos, sua riqueza multimilionária advinda dos recursos naturais fez o governo do Catar investir em equipamentos culturais, com a decisão de importar para o deserto marcas europeias de museus e com a edificação de um cenário colossal de luxo tão artificial quanto abusivo.
Explica-se assim, pois, por que um país carente de qualquer tradição esportiva – diferente, por exemplo, do tradicional fervor turco pelo futebol –, conforme demonstra o desempenho pífio da equipe do Catar nos três jogos da primeira fase da Copa de 2022, tenha todo o dinheiro petrolífero para erguer oito super-arenas ultra tecnológicas e "modernas". A realização do Mundial no Oriente Médio foi feita à custa da exploração aviltante de trabalho imigratório internacional e de artifícios predatórios financeiros que se configuram aberrações climáticas, a exemplo da inédita experiência de climatização do interior dos estádios.
Em contrapartida, tentativas pontuais de boicote por parte de torcedores organizados, de movimentos sociais e de determinadas federações de futebol na Europa, emulados pelas reportagens da imprensa e pelas denúncias da opinião pública, não foram capazes de demover o projeto concentrador de capital da FIFA, agora com Infantino no comando.
Vista, pois, a longa duração de um torneio prestes a completar cem anos de existência – conseguirão o Uruguai e a Argentina sensibilizar a ganância da FIFA e realizar em 2030 um sonhado novo Mundial no Cone Sul, em comemoração ao centenário do evento em 1930, ao bicentenário de independência do país oriental platino e ao reconhecimento da conquista do tricampeonato argentino em 2022? – o Catar é tão somente mais um capítulo, em certo sentido acintoso e ultrajante, mas revelador dos modos pelos quais se articulam na história global dos século XX e XXI as inter-relações entre futebol, capitalismo e geopolítica.
Isso é corroborado pelo ineditismo das medidas anunciadas por Infantino em seus primeiros anos de gestão: a Copa de 2026 em três países, a cobrir todo um continente, capitaneado pelos EUA – seria uma contraprestação ao armistício do FIFAgate perpetrado pelo FBI? –, com mais um terço de participantes, a saltar de 32 para 48 selecionados.
Afora as injunções externas de que nos ocupamos nesse breve texto, a narrativa em campo do Mundial do Catar aponta para a continuidade da hegemonia técnica entre os selecionados europeus e sul-americanos, com a conquista argentina de seu tricampeonato, quase trinta anos após os feitos de Maradona no México (1986) e a consagração de uma persona antípoda, mas sucessora na linhagem das idolatrias portenhas em sua provável última Copa: Lionel Messi. O significado esportivo lega ainda o caráter narrativo em torno do imprevisto e do extraordinário, com os selecionados nacionais capazes, a cada edição, de seduzir e de surpreender. Tal foi o caso do Marrocos em 2022 – a primeira equipe africana a alcançar uma semifinal –, com sua capacidade subjacente de ativar todo um imaginário social, mediante a condição de país árabe-mediterrâneo a oscilar entre a África e a Europa.
Mais que a conquista da Argentina, ficará na memória daqueles milhões e bilhões de telespectadores o acompanhamento de uma das partidas finais mais eletrizantes entre os vinte e dois Mundiais já ocorridos. Pode-se até evocar o drama do "milagre de Berna", Alemanha 3 X 2 Hungria em 1954, ao assistir à disputa entre França e Argentina, decidida nos pênaltis, após uma partida intensa e envolvente para os amantes do futebol, e mesmo para os indiferentes, que apenas de quatro e quatro anos assistem a um jogo de futebol.
Y la nave va…para a América do Norte. Até 2026.
Referências consultadas
ARCHAMBAULT, Fabien. « Le continent du football ». In : Cahiers des Amériques latines. Paris : IHEAL Éditions, 2014, n. 74, p. 1-17.
ASTRUC, Clément. Le football, ambassadeur du Brésil? Une projection international par le sport (1945-1974). Paris : Thèse de doctorat/IHEAL – Nouvelle Sorbonne/Paris III, 2022.
BROMBERGER, Christian ; DIETSCHY, Paul. « La Coupe du monde du Moyen-Orient ? ». In : Revue Football(s) : Histoire, culture, économie et société. Presses universitaires de Franche-Comté, 2022.
BURLAMAQUI, Luiz Guilherme. The making of a global FIFA: cold war politics and the rise of João Havelange presidency, 1950-1974. Berlin: De Gruyter, 2022.
COMPAGNON, Olivier. L'adieu à l'Europe. Paris: Fayard, 2013.
RAMONET, Ignacio. « Un fait social total ». In : Le Monde Diplomatique : Manière de voir 39 – Football et passions politiques. Paris : bimestriel mai-juin 1998, p. 6-7.
VONNARD, Philippe. L'Europe dans le monde du football : genèse et formation de l'UEFA (1930-1960). Bruxelles: Peter Lang, 2018.
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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