Muito barulho por nada? Cenas da Semana de Arte Moderna de 1922
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Passados cem anos, muito tem-se falado em 2022 acerca do significado da Semana de Arte Moderna na cultura brasileira. Defensores e detratores, revisionistas e intérpretes mais hegemônicos esgrimam suas posições a favor e contra nos jornais e em programas de televisão. Mas o que se deu afinal nas dependências do Teatro Municipal de São Paulo entre os dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922? É o que vamos aqui minimamente procurar reconstituir.
A primeira noite do festival, após meses de preparação por iniciativa de um grupo de jovens artistas e seus respectivos patrocinadores, é iniciada com Graça Aranha. Este é ouvido em respeitoso silêncio pela plateia, ainda curiosa intrigada pelo que ia suceder e intrigada pela natureza do evento. À medida que o tempo passa e figuras menos conhecidas sobem ao palco, o clima de hospitalidade se desfaz no restante da noite, com os espectadores a romper com o decoro do elegante teatro. Ao contrário das regras de etiqueta esperadas para a ocasião e para aquele espaço nobre da cultura da cidade, a plateia manifesta-se de maneira ruidosa na proporção em que o evento transcorre, com seguidas interrupções coletivas da leitura dos que ocupam o palco. À convenção das palmas aclamatórias, contrapõem-se assobios e chiados irônicos, alaridos e impropérios ofensivos.
Dado à oratória, Oswald intercede e contra-ataca: coloca foco na literatura, faz críticas ásperas à poesia romântica de Castro Alves e diz que Carlos Gomes (1836-1896) é horrível. Lê fragmentos do seu ainda inédito manifesto Pau Brasil e de seu romance Alma, primeiro volume da trilogia Os condenados. Na intervenção, recita versos em trocadilho: "Chove chuva choverando/que a alma do meu bem está-se toda se molhando".
Menotti Del Picchia é o mestre de cerimônia da primeira noite. O escritor apresenta os que sobem ao palco e convida-os a declamar seus poemas ou representar os ausentes. Mário de Andrade capricha na veia satírica com passagens de Paulicéia, ao passo que o carioca Ronald de Carvalho lê Os sapos, de autoria do poeta Manuel Bandeira, residente no Rio, impossibilitado de comparecer. Ato contínuo, ante o estranhamento do que era lido, os versos de Bandeira são glosados pela plateia irreverente, que em tom de ironia ecoa a composição poética inusitada: "Foi. Não foi. Foi. Não foi"…
As vaias amedrontaram Mário de Andrade, no momento de recitar seus versos. Sérgio Milliet (1898-1966), de sua parte, não se intimida com a hostilidade aos artistas e dirige-se ao proscênio. Sua intervenção é recebida com mais chistes do público, sob a forma onomatopaica de miados, relinchos e cacarejos. Em boa hora chega o momento do intervalo, fermentado por comentários nos corredores e por burburinhos nas salas de fumar.
A segunda parte da noite tem como grande destaque o maestro Villa-Lobos, cuja subida ao palco faz prorromper palmas prolongadas. A receptividade é acolhedora apenas à primeira vista. Durante a execução de sua orquestra, ouvem-se mais ondas de piadas de parte da audiência nas galerias. A despeito dos instrumentos musicais tradicionais como o piano, o violino e o clarinete, a incompreensão ante a apresentação do compositor erudito carioca deve-se à inclusão de uma folha de zinco, de danças africanas e de material percussivo das congadas. O público manifesta repúdio e os ruídos se intensificam. De sua parte, a direção do Municipal, temerária de tumultos, decide precipitar o fim do espetáculo e deixa cair o pano antes do que fora programado.
Dois dias mais tarde, quarta-feira, a 15 de fevereiro, ocorre a segunda e grande noite da Semana, igualmente escandalosa. O saguão do teatro está coalhado de pinturas. São ao todo 84 pinturas modernas, pertencentes a colecionadores ou de autoria dos artistas que participam do evento. A incompreensão volta a dar a tônica e ouve-se entre os comentários de que os quadros em exposição são "arte degenerada". Isto começava pela polêmica Malfatti, influenciada tanto pelos expressionistas alemães quanto pelo cubista e litógrafo francês Fernand Léger (1881-1955), continuava com Carnaval e Janela do mangue, de Di Cavalcanti, e se estendia até às gravuras de Oswaldo Goeldi (1895-1961) e de Vicente do Rego Monteiro (1899-1970).
Além da pintura, a arquitetura também se fez presente, com maquetes do polonês Georg Przyrembel (1885-1956). O escultor ítalo-paulista Victor Brecheret (1894-1955) expõe 12 esculturas de sua lavra. Duas delas são de propriedade de Mário de Andrade – "Volta da batalha" e "Cabeça de Cristo com trancinhas" –, sendo que a última obra, feita de bronze, horroriza a família de Mário, pelo modo como representara a figura religiosa. Mário, por sua vez, frequentava o atelier de Brecheret desde 1920, um espaço improvisado no Palácio das Indústrias, e escrevia artigos em periódicos da época sobre o escultor.
Brecheret apresenta ao público ainda uma maquete do futuro "Monumento às Bandeiras". O projeto fora idealizado para o Centenário de 1922, em paralelo ao oficial "Monumento à Independência", vencido em concurso público no ano de 1919 pelo conterrâneo Ettore Ximenes (1855-1926), mas foi construído apenas nos anos 1950, para as comemorações do IV Centenário da cidade. A obra escultórica de Brecheret ainda hoje monumentaliza a região do parque do Ibirapuera.
Aquela quarta-feira assistiria também a sessões musicais, comandadas pelo maestro Ernani Braga (1888-1948) e pela pianista Guiomar Novaes (1894-1979), que apresentam os regentes Francisco Mignone (1897-1986) e Camargo Guarnieri (1907-1993). Outra atração foi a recitação de poemas, a exemplo da antologia de versos de Ribeiro Couto (1898-1963), assim como a leitura de trechos de romance, feita por Plínio Salgado (1895-1975), que preparava o seu O estrangeiro.
No teatro, Menotti Del Picchia profere conferência em torno dos princípios da estética moderna. Preconiza a inovação em detrimento da tradição passadista: "Nada de postiço, meloso, artificial, arrevesado, precioso: queremos escrever com sangue – que é humanidade; com eletricidade – que é movimento, expressão dinâmica do século; violência – que é energia bandeirante".
Ainda na segunda noite, Mário de Andrade sobe as escadarias do Municipal e lê, para um público improvisado, passagens de A escrava que não é Isaura, outro texto ficcional e programático a fustigar o romantismo brasileiro, desta feita com alusão provocativa a Bernardo Guimarães (1825-1884).
Em contrapartida à agitação dos dois primeiros dias do evento, a terceira noite, uma sexta-feira, 17 de fevereiro, foi mais amena e apaziguadora. A assistência reduziu-se a metade e, talvez por isto, Villa-Lobos pode executar seu programa sem interrupções do público, cujo gosto musical sentiu-se menos abalado com a audição da Sonata n. 2, Farrapos, Kankikis, Kankukus. O encerramento da Semana foi comemorado com um almoço no Hotel Terminus, reunindo seus promotores, também chamados de "apóstolos", entre eles os nossos dois Andrades.
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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