E O PULSO?! HOJE…AINDA PULSA?!
Por Hélio Rainho
Peste bubônica, câncer, pneumonia
Raiva, rubéola, tuberculose, anemia
Emblemática canção do caleidoscópio musical da segunda metade da década de 80 – um dos períodos mais férteis da música brasileira, caracterizado pelo engajamento poético-crítico-social da juventude nos processos de abertura política do país através do chamado "rock Brasil" –, a canção O Pulso, lançada em 1989 no álbum Õ Blésq Blom do octeto pós-punk Titãs, servia um controverso coquetel de menções patológicas amalgamadas em versos provocativos. Criação literato-conceitual do concretista confesso Arnaldo Antunes, a canção trabalhava com o encadeamento rítmico de termos contrários à poesis convencional, evocando nomes "malditos" de enfermidades (uma mais, outras menos conhecidas) para corroborar o intuito claro da arte titânica: a transcendência da linguagem musical por meio de signos claramente disruptivos.
Rancor, cisticercose, caxumba, difteria
Encefalite, faringite, gripe, leucemia
Fiéis à estética evocativa de um desmantelamento das lógicas do pop comercial a que a própria banda pertencia, os Titãs destacavam-se por um conceito de rotatividade nos vocais que deslocava o eixo da idolatria normalmente trabalhado pelas bandas da época, além de trabalharem com temas pouco ortodoxos e estruturarem muitas de suas canções com uma lógica minimals de frases curtas, certeiras ou palavras-chave para imprimir conceitos sem manuais de instrução. Os Titãs nunca deixaram de ser comerciais, e nem por serem comerciais deixaram de ser vanguardistas e digressores.
Hepatite, escarlatina, estupidez, paralisia
Toxoplasmose, sarampo, esquizofrenia
O incômodo pelos termos malditos proferidos em sequência começa a transcender para a inquietude quando outros vocábulos referentes a baixos instintos sociais mesclam-se/igualam-se ao teor das moléstias…
Ulcera, trombose, coqueluche, hipocondria
Sífilis, ciúmes, asma, cleptomania
"Ciúmes". "Estupidez".
Na poética da canção, "o pulso ainda pulsa" enquanto sobrevive, mas "o corpo ainda é pouco" porque, na ambiguidade do que se quer aí dizer, a limitação fisiológica tem muito a ver também com o fato de haver uma alma a esse corpo somada, o que o torna mais amplo e mais extenso, bem como mais propenso a outras formas de ascese ou de contaminação.
Salto rápido.
Virada de chave para 33 anos depois.
2022.
Estamos há dois anos pelejando contra uma doença tão imprevista como aquela que derrubou as torres gêmeas e silenciou o mundo. Uma ameaça mutante perversa e natural, contrariando todos os prognósticos de nossos tempos ditos tecnológicos, derrubando nossas seguranças absolutas, sacrificando vidas em todos os cantos do globo terrestre, como se o planeta Terra fosse um matadouro intergaláctico subitamente vulnerável a um ser invisível de multiplicação incontida.
A pergunta é: quem escreveria, hoje, outra canção como O Pulso?
Temos uma pandemia letal (a COVID-19) dada por sucessivas (infinitas?!?!) mutações virais. Temos males sociais horrendos decorrentes de um maniqueísmo político mundial (eles chamam por aí de "polarização") e, em vez dessas coisas nos fazerem "crescer" como nos anos 80, percebemos uma atrofia moral, conceitual e ética.
Reumatismo, raquitismo, cistite, disritmia
Hernia, pediculose, tétano, hipocrisia
Em meio ao deserto conceitual da proliferação e do consumo irrestrito de canções de pouco/nenhum teor crítico, na maior parte das vezes afogadas no hedonismo doentio deste novo século perturbado por enlevos passionais e absolutamente alienado de nossas causas essenciais…quem irromperia hoje o silêncio manifestando um grito de "O Pulso 2" – expurgo poético sonoro-textual de todas as doenças de nosso país neste século?!
Brucelose, febre, tifoide, arteriosclerose, miopia
Catapora, culpa, carie, câimbra, lepra, afasia
Pois é isto. Celebraremos os 33 anos do lançamento de O Pulso – essa corrosiva canção, marco de uma retórica punk que apontava uma sociedade doente ou nada sólida antes mesmo de Zigmunt Bauman teorizar no ano 2000 sobre uma "modernidade líquida" – pensando que, quando não havia pandemia, era mais "fácil" se processar uma canção sobre o mundo enfermo em que vivemos.
O pulso ainda pulsa
E o corpo ainda é pouco
É pra se lamentar, sim, que a pandemia biológica, moral, mental, intelectual e espiritual esteja solta por aí e não se tenha – ou ninguém queira que tenha! – uma retórica de fúria denunciando o que se vê! Toda alternativa ao que deveria ser dito e não se diz gera uma disfuncionalidade daquilo a que Umberto Eco chamaria de "equivalências arbitrárias", ou seja, o pacto da linguagem comum onde emissor e destinatário identificam os signos de um discurso que os une e identifica.
Não. Não temos mais uma música como O Pulso para falar de 2022.
Lá fora estão alienados demais com a panaceia das tais "vozes de representatividades" para que tal fatiamento concentre, em algum momento, uma pulsação só!
Assim
Pulso
Pulso
Pulso
Pulso
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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