Contos oníricos (IV)
Por Bernardo Buarque de Hollanda
– "Não, de nada vai me valer agora essa viagem", resmungava Iara, irritada na poltrona do avião que iniciava decolagem, ao lado do irmão e da mãe, que tinham decidido a mudança para Miami havia dois meses, sem qualquer motivo plausível. Através da pequenina janela do avião, em que mirava as curvas e espirais do Rio, a jovem projetava em sua lembrança uma outra janela, bem maior, a mesma de onde ela e Aline passavam as tardes conversando.
O cenário da casa da amiga, no bairro do Catumbi, podia não ser mais atraente que o panorama visto lá de cima, mas se acostumara àquela paisagem como aos botões de sua camisola mais antiga. Em meio a longas divagações, confidenciavam tudo entre si, amadurecendo uma amizade. Viviam sob o adolescer do tempo, que no crepúsculo enlaça a noite e o dia.
Todavia, era também uma época de enchentes e violência, vivenciada por um clima apreensivo na cidade. A cada tormenta, as chuvas no Catumbi varriam os barracos que precariamente se sustentavam nas encostas das montanhas. Já a guerra deixava como sinais, pela manhã, o alarido da polícia no sopé do morro da Mineira e, à noite, as rajadas de metralhadoras, que torturavam o sono do bairro. A mãe de Aline, d. Inocência, não distinguia mais se estava dormindo ou se estava acordada, em face do barulho que feria os ouvidos de todos. De quando em vez, era obrigada a deitar-se na sala para se proteger das balas-perdidas que resvalavam na janela do quarto.
Apesar das agruras, aquela realidade envolvia Iara e seu cotidiano. Sentia-se agora triste, desabrigada. Escorria uma chuva fina nas duas colinas do seu peito, alagando o corpo teso e frio. Iara inclinou-se do assento a fim de avistar pela última vez o Rio de Janeiro, que se perdia na distância. A lágrima que se reteve na superfície de seus olhos parecia, daquela altura, inundar toda a cidade.
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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