Contos oníricos (III)
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Aconteceu justo naquele dia, data de seu aniversário. O despertar de Iara da cama foi iluminado pela vela flamejante do bolo carregado pelo pai. A casa ia aos poucos sendo aquecida pelo sol, que banhava os contornos da cidade, e pelo azul do céu, que abraçava o mar encrespado. Com um sopro seco, a menina apagou ao mesmo tempo a chama da vela e o semblante feliz de um pai coruja.
Iara, aquele pequeno lume de beleza, segundo definição paterna, completava sete anos e, desde o seu nascimento, irradiava vida na casa descascada pelo tempo. O pai, depois de entregar o bolo, foi buscar o presente na sala e voltou com um aquário repleto de peixes nadando n'água cristalina. Era um aquário ao que possuía d. Glória, a vizinha que deixava Iara passar as tardes observando aquele palco de mar miúdo e límpido, com luz e água borbulhantes. A surpresa atiçou a menina, que ondeava alegria.
Para a aniversariante, um mundo melhor havia naquele aquário habitado por peixes, alguns rubros, outros alaranjados, todos listrados. Pedrinhas e plantas em miniatura adornavam aquele retângulo envidraçado. Preferia-o mesmo à vista da Lagoa Rodrigo de Freitas, que da varanda do seu apartamento podia contemplar. Ficava assim a perquirir, com um olhar fluvial, cada serzinho, indo e vindo, como o sentido do mar. Eram olhos aguados, a um tempo ternos e esmaecidos, que a cada fluxo e refluxo pareciam estar mais submersos. Ávida por detalhes, perguntava para d. Glória tudo que lhe vinha à mente a respeito dos cardumes, o que a custo de muita paciência era possível saciar.
Como não queria causar mais incômodos à vizinha, o pai resolveu oferecer à filha aquele aquário que agora luzia em um canto do quarto. À medida que descrevia e mostrava os detalhes de cada peixe, o pai narrava a origem de Iara e sua ligação com os rios. Contava que existiam as iaras, mas também as mães-d'água e as sereias, os caboclos da Amazônia e os canoeiros de lua cheia, os barqueiros do rio São Francisco e toda uma série de estórias que, entremeando-se com a paisagem do aquário, iam compondo oceanicamente a imaginação daquela menina.
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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