Contos oníricos (II)
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Daquele coração urbanizado, certa noite, brotou um sonho. Foi um sonho delgado, cor de favela, ocre. Quando Iara amanheceu, seus olhos ainda estavam embaçados, feito neblina, e a penumbra que encobria seu quarto era ampliada pela persiana da janela fechada. Nem os rastros de luz que chegavam pelos vãos da porta podiam indicar se era cedo ou tarde. A jovem sentia a cabeça pesada e o corpo entorpecido por um sono profundo.
Ao erguer-se da cama, Iara notou que sua pele estava marcada por traços, qual rabiscos, garatujas de criança, produzidos pelas marcas do lençol. Seguiu em direção ao banheiro, atravessou o corredor e alcançou a sala. À procura da irmã, encontrou apenas seu vestígio: a louça suja e as migalhas de pão salpicadas sobre a mesa. Foi à cozinha, esquentou o café e recostou-se no sofá.
Iara padecia sozinha no apartamento, sem ter ninguém que a acudisse. E foi de um sentimento de vazio que recobrou à memória o sonho passado na noite anterior: a cena era a de um traficante que, junto ao chefe do morro, debandavam em fuga numa noite chuvosa, de relento e frio, após uma incursão de policiais à favela. O carro em que escapavam ultrapassava becos e ruas perseguido pelos comboios da polícia, cujas sirenes ressoavam estridentes. O traficante guiava o veículo com destreza, enquanto o chefe do morro portava um fuzil sobre o colo. Tinha o cuidado de quem carregava um recém-nascido e a tensão de quem é acossado inesperadamente.
Quando atravessavam a ponte Rio-Niterói, viram-se cercados e forçados a estancar o veículo. O traficante de pronto se rendeu, ao passo que o chefe do morro, em súbito desatino, saltou do automóvel e com o fuzil em punho desatou um turbilhão de tiros ininterruptos. A escuridão do céu foi rompida por um grito que ecoou no pesadelo durante um tempo indefinido.
Aquela lembrança deixou Iara prostrada. Avistou a janela e caminhou rumo à varanda, onde ficou meditando. Um ruído longínquo ainda trepidava em sua cabeça. De cócoras, Iara amparava o queixo nas duas mãos, serena, como se o silêncio tivesse encontrado seu ninho. Com o olhar alçava voo, sentindo a brisa que acaricia as árvores. O sol, recortado à beira das montanhas, despedia-se para o fundo do mar.
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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