Contos oníricos (I)
Por Bernardo Buarque de Hollanda
À frente de um homem jaz uma sala, completamente alva, imponente, pé direito alto. Nela, há uma exposição de quadros. Encontra-se esse homem a um passo do recinto, quando uma tela ao fundo prende sua atenção e o atrai para o interior do espaço. O visitante, ainda contido e teso, domado pela alvura do ambiente formal, vai-se aproximando da imagem vagarosamente. O quadro, de matiz impressionista, difere dos demais pelo amarelo ouro dos seus girassóis.
Súbito, em meio às pinturas dependuradas na parede, avista o visitante um outro homem, que se posta rente à moldura alvejada. Com efeito, esse último, estático, mãos cruzadas e inamovíveis, fardado de preto e de polícia, assemelha-se a mais uma figura suspensa, em exposição aos passantes.
Os olhares de ambos se entrecruzam, mas ato contínuo se despistam. Cada um parece querer dizer algo ao outro. Todavia, a formalidade silente do espaço absorve e emudece. Os dois se sentem constrangidos em emitir palavra, como se estivessem acuados pela situação inefável. A mudez impõe-se, mas aflige-os, dilacera a um e ao outro. Tanto o visitante quanto o segurança do museu incumbem-se de fugir com os olhos: o primeiro fita o chão, o segundo o teto.
Até que, a passos esquivos, o observador alcança o quadro e consegue apreciá-lo. Contudo, incapaz de se concentrar, o visitante dissimula. Faltam-lhe frases, palavras, gestos, mesmo uma monossílaba não encontra. Embarga-se a voz, pervade o silêncio.
Em um esforço final, procura contemplar a obra. Lê o título apenso à direita, no canto inferior da moldura. Em seguida, informa-se na legenda a autoria do pintor. Mira e admira por mais alguns instantes o quadro. É de Van Gogh. Tenso, sentindo-se vigiado, volve o corpo e o mais rapidamente possível evade-se do lugar. Vira as costas ao guarda, que ali permanece, estanque, enquadrado em sua função de salvaguardar obras de arte. Incapazes de comunicação, ambos frustram a liberdade, emudecidos. Negam um dom humano, negam a si mesmos.
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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