Dandismo negro - Parte 4, por Hélio Rainho
DANDISMO NEGRO – Parte 4: Os sapeurs do Congo e a releitura africana do dandismo contemporâneo
Por Hélio Rainho
A partir deste texto estaremos avançando em nossos estudos sobre o dandismo negro para sua manifestação mais contemporânea, vinculada mais especificamente ao século XX.
É bem verdade que os movimentos de emancipação estética por homens negros no ocidente têm tido papel importante na construção desses legados culturais de elegância e representatividade. Mas há um capítulo bastante especial dessa história envolvendo agentes africanos, em seu próprio continente, que tipifica de forma bastante expressiva as relações entre a afirmação estética, os códigos de moda e o caráter sociopolítico de transformação possível através do dandismo negro como um ato estratégico.
Estamos falando dos vultosos sapeurs do Congo. Ousados, arrojados, estilosos, engajados. Reconfiguraram a historia de seu país usando como armas…os ternos!
Conhecidos como dândis negros contemporâneos, os sapeurs do Congo integram o movimento de subcultura conhecido como 'La SAPE' (Société des Ambianceurs et des Personnes Elegantes). Desde o período escravocrata do século XVII, os senhores europeus adornavam com trajes luxuosos seus escravos para exibi-los em ambientes definidos. Mas, dentro do território africano, a autonomia e agência desses usos e costumes faria a diferença mobilizando um povo em sua luta por uma emancipação.
Os congoleses, durante o período em que foram colonos da Bélgica, após terem sido convocados como soldados para a Primeira Guerra Mundial como aliados dos franceses, retornaram influenciados não só por hábitos genéricos daquela cultura – promovidos por uma "francofonia" que visava produzir uma unificação entre as duas etnias -, mas também fascinados pela elegância da alfaiataria franca. Em 1922, André Matsoua, uma influente figura religiosa e política do Congo, veio de Paris e subverteu o hábito de seus compatriotas de vestir trajes africanos tradicionais, popularizando o uso de ternos franceses e trajes de corte europeu.
O processo de interculturação francofônica precedeu a sangrenta guerra de independência do Congo nos anos 60, na qual o ditador Mobutu Seke Seso impôs uma política de "africanização" que proibia qualquer tipo de vestuário ocidental e padronizava uma forma mais "tradicional" de vestuário africano. Surge, então, um grupo de homens em Brazzaville representando um ideal político-estético de resistência, intitulado La Sape, cuja marca registrada são os ternos de alfaiataria fundindo estampas e padrões étnicos ao elegante corte dos ternos franceses, criando um ambiente de oposição semelhante ao dandismo oitocentista dos literatos parisienses e londrinos.
Em sua obra Congo, Une Histoire, o historiador e arqueólogo belga David Van Reybrouck nos faz um interessante relato sobre esse movimento histórico:
"Os jovens que odiavam o Mobutismo conceberam uma forma muito particular de comentário social. Eles não usaram palavras ou imagens para protestar, mas roupas. [..] Eles, portanto, se vestiram com roupas novas e extremamente vistosas. Estavam economizando dinheiro para importar roupas de estilistas caríssimas de butiques na Avenue Louise em Bruxelas e na Place Vendôme em Paris – pelo menos é o que afirmam. Eles batizaram seu movimento de SAPE (Society of Ambianceurs and People of Elegance). O músico Papa Wemba, um jovem do povo que conseguiu se tornar uma estrela mundial, era o seu Papa, o "Papa da SAPE". Esse movimento foi extremamente curioso. À primeira vista, parecia um absurdo em tempos de crise aparecer em Kinshasa com óculos escuros chamativos, uma camisa Jean Paul Gaultier e um casaco de vison, mas o materialismo dos sapeurs era uma crítica à sociedade, como o era o movimento punk na Europa. […] O verdadeiro sapeurs era superbacana: mexia-se, falava com total controle, comprava cerveja para os amigos e seduzia as meninas com estalos. Ele era um dândi, um playboy, um esnobe. O luxo rendeu-lhe consideração. Não desprezávamos o sapeur, o admirávamos. Para muitos jovens muito pobres, essa extravagância os manteve esperançosos." (REYBROUCK, 2021, p.385,386)
Papa Wemba (1949-2016), em 1966, reforçou o movimento em caráter de rebelião política contra o governo do ditador Mobutu, rejeitando os trajes em peles tigradas, criando sua própria aldeia, tornando-se referência para um movimento que integra elegância, performance e religiosidade ressignificadas como ideais estéticos.
Nascido em Brazzaville, considerado o berço dos sapeurs no Congo, o autor Elvis Guérite Makouez, filho de um veterano da Segunda Guerra Mundial educado entre a Europa e sua África natal, publicou a obra clássica Dictionnaire de la SAPE publicada em 1970, na qual esclarece um dado bastante relevante sobre o movimento da sapologie. Makouez destaca que os sapeurs estão alem de uma suposta superficialidade dada no nível de seu vestuário, uma vez que sua cultura peculiar e autêntica é estabelecida por uma parte prática (mvuatulu ou mvuatu) e uma parte teórica (n'kelo), instituindo um conjunto de regras, costumes, hábitos, linguagem e gestos.
Além da atuação política na derrubada de uma ditadura e estabelecimento de uma república democrática em seu país, a força da sapologie estende-se a outros níveis de sociabilidade dentro do delicado território de Brazzaville e outras áreas pobres do Congo. Os sapeurs costumam produzir eventos realizados sobre palcos improvisados, espécies de coretos que lembram em alguns momentos as origens do teatro chamado mambembe. Eles se dividem em grupos e estimulam seus aficcionados a torcerem por seus preferidos, numa disputa performática saudável e cordial que mistura interpretação, desfile de moda e uma série de elementos estéticos que pontuam suas apresentações duelísticas, sagrando um campeão. Durante esses eventos, realizados na maioria das vezes em locais de extrema pobreza, os sapeurs desfilam seus trajes luxuosos, suas roupas de grife, sua pompa, diante de meninos de pés descalços em solo arenoso e próximo a barracos simplórios.
Um dado curioso e importante sobre essa questão nos foi esclarecido por Thezis Luyundula, conhecido por seu nome artístico de Noir African Thezis, em entrevista concedida para a elaboração de minha dissertação de mestrado. Ao contrário do que nos sugeriria uma ostentação desnecessária ante a desigualdade social latente dos trajes de grife dos sapeurs contrastando com a pobreza de regiões como Brazzaville, La SAPE tem um propósito que transcende a questão estética no campo da materialidade e adentra a um propósito filosófico: despertar nas crianças pobres da região a ascese, a ruptura com a estrutura miserável que os cerca, levá-los a um impulso de mudança e não-acomodação a uma crença limite. Num intento quase religioso, os sapeurs "adotam" artisticamente alguns desses meninos, os treinam e impulsionam para serem também adeptos dos costumes e da filosofia de La SAPE, combatendo suas crenças limitantes e trazendo novo sentido mental e espiritual para suas vidas.
A elegância e a singeleza de Thezis, que há alguns anos mora no Rio de Janeiro no município de Caxias, o levaram a ministrar palestras e difundir sua cultura, inclusive no Consulado de França, despertando interesse em estudiosos sobre as relações entre ideais estéticos e sociabilidades.
Os sapeurs congoleses são exemplo de dândis negros que disseminam a cultura da elegância e do bem vestir na contemporaneidade, com ternos das mais variadas grifes de luxo, associando performance e estilo de vida com uma atitude política. Eles também nos ensinam que a vista pode ser mais bela, mais colorida e mais generosa.
LEIA TAMBÉM NO GV CULT:
DANDISMO NEGRO – Parte 1: "Origens" – https://gvcult.blogosfera.uol.com.br/2021/01/29/dandismo-negro-parte-1-origens/
DANDISMO NEGRO – Parte 2: "O Harlem Renaissance" – https://gvcult.blogosfera.uol.com.br/2021/02/24/dandismo-negro-parte-2-o-harlem-renaissance/
DANDISMO NEGRO – Parte 3: "Zoot suits jazzistas e Ternos brancos do samba"
Referências bibliográficas:
BOSTON, L. Men of Color: Fashion, History, Fundamentals. New York: Artisan, 1998.
MAKOUEZI, Elvis Guerite. Dictionnaire de la SAPE: Société des Ambianceurs et Personnes Elégantes Publibook – Paris – 2013
RAINHO, Hélio Ricardo. Pintores da vida moderna: uma perspectiva crítica sobre o homem contemporâneo e o consumo de moda masculina. Orientador: Bernardo Borges Buarque de Hollanda. FGV CPDOC – Dissertações, Mestrado em História, Política e Bens Culturais, 2019. Acesso em http://hdl.handle.net/10438/27358.
REYBROUCK, David Van. Congo, Une Histoire. Paris: ActesSud-Papiers, 2012.
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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