Da história da filosofia ao exercício filosófico
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Como o estudo da história da Filosofia pode se tornar um acesso real ao exercício filosófico?
Seria possível justificar o estudo da História da Filosofia, em especial a Filosofia Antiga e os autores Pré-Socráticos, recordando o pensamento de três contemporâneos que desenvolveram suas ideias através do resgate de Tales de Mileto e Anaximandro: Hegel e o conceito de absoluto; Nietzsche e a perspectiva da totalidade; Heidegger e a articulação filosofia/filologia. Contudo, a fim de não nos acrisolarmos num "argumento de autoridade", é necessário discutir os meandros que permeiam o florescimento do pensamento filosófico e como ele se revitaliza em uma incessante possibilidade ao exercício reflexivo da filosofia.
A primeira questão que emerge no contexto do estudo histórico é a própria necessidade de saber, no âmbito filosófico, em que consiste a história. Consistiria esta em uma sucessão de fatos pregressos realizados pelo homem e uma série de correntes de pensamento – sociologicamente compreensíveis – a que caberia registro como passado remoto? Para a filosofia, não. A história, segundo os filósofos, não é extrínseca ao pensamento e à própria matéria do ato de pensar. Um bom exemplo encontra-se no helenista e estruturalista francês J. P. Vernant, autor de As origens do pensamento grego. A filosofia não se contenta em "conhecer a história" e assinalar os principais acontecimentos que a norteiam, pois concebe as fontes históricas como um privilegiado locus para a reflexão.
Nesse sentido, o estudo e a tradução das doxografias deram ensejo às mais distintas interpretações, de tal maneira que uma mesma palavra ou um mesmo conjunto de palavras adquiriram acepções novas em contraste com sua origem similar. Logo, para a filosofia, a tradução de um texto grego não constitui um problema linguístico, mas um problema filosófico. Se as traduções advêm de uma origem comum, por que são tão díspares entre si? Ou por outra: como pode surgir uma unidade na diversidade e uma diversidade na unidade? Como pista para resposta, evoco Guimarães Rosa: "tem um não em todo sim, e as pessoas são muito variadas".
A tradição e o legado deixado por estes primeiros pensadores, que viveram no apogeu de uma Grécia marcada pela fascinação mítica, tiveram um redimensionamento com Nietzsche. Apesar da dificuldade de decifrar os textos originais e de identificar a quem cabia aqueles escritos – a exemplo de estipular o que era ou não de Simplício na sentença de Anaximandro – o filósofo alemão destacou os autores pré-Socráticos com o intuito de fornecer uma nova postura em relação ao seu tempo. Remeto-me à contraposição que Nietzsche faz entre ciência e filosofia: para atravessar um rio, o cientista apoia-se em uma pedra, mas afunda com ela, ao passo que o filósofo apenas a escora, de modo a saltar e alcançar a outra margem do rio.
O resgate da tradição pré-socrática – tradição, do latim tradere, quer dizer trazer, entregar, ao mesmo tempo que trair – efetuada pelo autor de A origem da tragédia, que conseguiu opor a fragmentação do saber preeminente em sua época à unidade da proposição de Tales de Mileto, mostra como o estudo da história não se reduz à escatologia de um filósofo extraterreno. A proposição à primeira vista absurda de Tales, segundo a qual a água é o princípio de todas as coisas, adquire a mesma aparente feição absurda na forma como Nietzsche distingue o cientista do filósofo. A conexão passado-presente é estabelecida através de uma postura semelhante à realidade, inaugurando uma nova senda para o porvir.
A fim de esclarecer o que quero dizer, gostaria de digredir e propor um exemplo. Todo movimento de mudança e revitalização nasce de um retorno às raízes de seu empreendimento. Assim, no caso do cinema e, em especial, no movimento Cinema Novo brasileiro, que teve em Glauber Rocha seu principal artífice, a questão da nova temática e da nova linguagem emerge a partir do resgate da "velha" cinematografia de Humberto Mauro. Para Glauber, que mais tarde fixaria suas ideias no ensaio A estética da fome, Humberto Mauro desvelava o Brasil em potencialidade e em seus dilemas, de tal modo que "Ganga bruta" teria tanto a dizer à filmografia nacional quanto os filmes de Bergman, Eisenstein, Rosselini e Orson Welles.
Guardadas as devidas proporções, no tocante ao paralelos Nietzsche/Glauber e Filosofia/Cinema, não terá sido semelhante a atitude de Nietzsche ao colocar os Pré-Socráticos em um patamar mais elevado que Platão e Aristóteles?
A análise da sentença de Anaximandro, que deu acesso a quatro vias de interpretação, encerra uma gama de perspectivas a serem enfocadas. Questões como princípio e moral, poesia e natureza, determinação e acaso, todas elas são passíveis e plausíveis de reflexão. Quanto ao último par, este coaduna-se com as seguintes palavras nietzscheanas: "é preciso ser a angústia de um caos para gerar uma estrela, somente do caos poder advir uma estrela".
Vive-se hoje sob a sanha imperativa do progresso técnico-científico, com seu sentido à primeira vista inevitável, a levar tudo de roldão. Assistimos inertes à mudança das noções de tempo-espaço, em razão da velocidade da informação. O controle da imagem exerce igualmente um poder fusional, que acarreta a simbiose real-virtual, nublando a compreensão de cada fenômeno.
Destarte, não seria necessário volver a exemplos em princípio absurdos, porém plausíveis, de um Tales de Mileto e de um Friedrich Nietzsche em face do espetáculo moderno e do mundo contemporâneo? De que maneira encontrar o fundamento das transformações que movem a sociedade? O liame passado-presente e a reflexão sobre o eterno e o perene na vida atual já não seriam um próprio exercício filosófico?
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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