Como Pular Carnaval
Por Vítor Steinberg
É carnaval. Nada explica melhor o Brasil – o país que, como Macunaíma, não tem caráter. Somente as máscaras pandemônicas e pandêmicas e o mistério de saber: quem as veste? Dão a cara do Brasil. Não há identidade, vivemos a miscigenação mais-que bem feita entre todas as cores do espírito e do corpo. Aqui é quando o sincretismo fala por si só, representa por si só, ganha corpo próprio, caminha. Nosso gigantismo cultural e natural está incorporado em todos e isso não está no cérebro.
Localiza-se na cintura nossas fisionomias de brasileiros. É no rebolado que tudo fala, no requebrar – pois daí também nasce a dança contemporânea emancipada do balé clássico. Enquanto o balé é postura e retidão, o requebrar reeduca integralmente a cultura europeia. Dá aula. Se o balé vai para o lado da coluna travada sem ginga e molejo isso é por que o europeu romântico sofria de medo da loucura. Era travado, mas gracioso. Era o maior pavor daquela época de suicídios por se ler "Os Sofrimentos do Jovem Werther", de Goethe. A loucura como brincadeira lúdica da alma (fantasias de carnaval) era o descompasso da retidão do espírito. Confusão e medo.
Aqui falamos de rebolar, da cintura. A palavra "cintura" vem de "centauro" – o animal mitológico que é dividido entre touro e homem. Vale também para "sagitário" – metade homem, metade cavalo. Ou seja, nossa metade animal – as pernas, joelhos e pés e nossa metade humana – da cintura para cima, ereta. Talvez o balé clássico fique somente por aí, com nossa parte humana, usando a ponta do pé apenas para sustentá-la com toda elegância. Quando estamos num bloco de carnaval, no meio da multidão, o axé é que toma rédea, viramos seu cavalo. E isso esclarece por si só a física quântica que é o Brasil.
Uma física ignorada por esses patriotas de plantão conduzidos por preconceitos. Os cegos energúmenos que amam o Brasil e têm horror ao povo brasileiro. Que afirmam com unhas e dentes que brasileiro é isso e aquilo. Eles não sabem o que é a live da Bethânia, o que é de fato ver uma alegre pessoa remexendo até o chão. A alegria não se aprende com ninguém. E o que ela faz é lição para você, europeu do balé, missionários dos alfabetismos em geral.
Essa física quântica da que nossa cintura é responsável são os filmes de Glauber Rocha, as letras embaralhadas e certeiras de Caetano, o "extra" de Gilberto Gil. Da nossa linguagem em requebrar – extravagante, extraordinária, extrapolada, extraterrestre. Está fora da sua cabeça e do teu coração, está ali, num pandeiro místico pendurado em sua barriga.
O cinema de Glauber é carnavalesco, é chegar lá no set e todo mundo ter vontade de ficar bonito – todo mundo é seu produtor, seu ator, seu maquiador. É notável como as pessoas se dedicam às suas fantasias – seu amor por estar bonito e alucinado na festa. Quando Glauber grava, o ator está nessa sensação, de estar pronto e brilhante para a festa. E o touro que guia a câmera é o samba, é a marcha. Sabedoria na insânia – multidão de apaixonados, porém seguindo rigorosamente a marcha.
Tudo funciona por que todos no set anseiam estar assim. Ninguém foi compelido, ninguém atua, incorpora. Quantos involuntários atores formidáveis não encontramos na avenida representando suas fantasias até o fim da festa. No bloco Quaimando a Largada – da Praça da Biblioteca – vi um homem vestido de diabo que não parava de girar um tridente. Quando uma mulher se aproximava dele, ele dizia: "Venha conhecer o inferno! Estou te convidando, estou te clamando". E manteve esse papel até o raiar do sol, no metrô, quando pude reencontrá-lo, derretido de glitter. É assim que um ator deve se enamorar pelo papel, vive-lo com tanta paixão que não há hora para acabar. Não é atuar. Tudo vira.
Farei de tudo pelo triunfal desfile do cinema carnavalesco: com o set em festa e marcha. Disciplina e alegria. Paixão e carinho, preparar tudo com amor. Como as costureiras das escolas de samba. As lantejoulas.
Um cinema pau na mesa, sem-vergonha, sem medo de despontar para os gringos e para os brasileiros. Exatamente contrário a esse jeito "padrão FIFA" que faz tudo no Brasil se transformar às pressas, botou uma maquiagem estranha e toda cagada.
Uma maquiagem hollywoodiana que o Saci recusa, escorrega. Os filmes brasileiros ultimamente me condizem a esses estádios de futebol – efêmeros, despreparados, mal feitos, tapeados, só para aparecer lá fora. Isso desde "Central do Brasil". Cheios de vergonha. Vamos fabricar um cinema sem-vergonha. Ao invés de trapaceiro, travestido, transviado. Apolo & Dionísio.
Meu WhatsApp de um carnaval pré-pandêmico: Faz um mês que tem um ou dois glitters-pink de purpurina na minha carteira preta. Não saem nem com Veja Poder Oxigênio Ativo. Foi uma atriz do mundo real que jogou em mim no carnaval. Tenho certeza que ela estava fantasiada de fada.
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