O acervo das afinidades
Por Vítor Steinberg
Um grande mistério é a diferença entre a obra de arte e o artista. Quase nunca uma coisa anda junta com a outra. É comum o fã se arrepender por ter conhecido seu ídolo. Tenho um exemplo pessoal. Eu tinha 19 anos quando conheci David Lynch numa palestra da FAAP e fiz uma pergunta em público no microfone. O diretor, um dos meus grandes mentores, respondeu-me com um coice irônico: "Não!" e a plateia caiu aos risos como num sitcom americano.
Perguntei se sua comparação do fundo do mar com a meditação poderia ter a ver com a deformidade dos animais abissais em relação ao uso do inconsciente em sua linguagem cinematográfica.
Quiçá minha pergunta foi um pouco complexa, ou talvez, sempre indaguei, o problema foi da tradutora que se embananou na minha elaboração. Sem amenidades, passei anos ferido com a facada no peito, mas nunca deixei de ver todos os seus filmes e séries, inclusive considerando que a terceira temporada de Twin Peaks é o maior acontecimento audiovisual dos últimos tempos.
Meu exemplo é apenas um no oceano de histórias e loucuras que muitos já presenciaram. Há um fenômeno dos dias atuais, por exemplo, do qual jornalistas aparecem na televisão em suas home offices e (parece que combinaram) decoram como cenário de fundo suas bibliotecas. Algo meio cafona, só o Fernando Gabeira tem a elegância de ostentar suas frondosas samambaias. O formato HD da minha SmartTV (conquistada via exímio sacrifício) permite ler quais livros os jornalistas guardam nas estantes. Reparei que um cientista político removeu o exemplar de uma biografia de Wagner. Seria perigoso mostrar que ele aprecia o artista?
Tomamos Richard Wagner como um emblema nazista – ele mesmo não era flor que se cheire, arrogante, ambicioso, incontestável – mas basta ouvirmos um minuto de seus duetos operísticos que desfalecemos num universo mágico de alegria e amor. Há artista maior que a obra. E por vezes, o efeito contrário.
A obra de arte tem tudo a ver com o artista e ao mesmo tempo, nada a ver. A vida traz termos divergentes e não é espelho da arte. Não teríamos paciência para conviver um dia sequer com Van Gogh baforento tendo acessos de surto, engolindo tubos de tinta e arrancando a orelha. No Masp, permanecemos encantados e santificados observando sua caminhada campestre ao pôr-do-sol.
Não devia ser mole passar uma quarentena com Virginia Woolf, Diego Rivera ou Salvador Dalí (que curtia deixar um morcego solto em seu quarto enquanto fazia amor). Agressivo e delicado, mais complexo devia ser habituar-se a Beethoven. Ao ser abordado por um estudante de arquitetura, perguntando o que achou de sua maquete, o compositor destruiu o projeto com bengaladas.
Há ainda incompatibilidade de artista para artista, como quando Chico Buarque provocou Caetano Veloso sobre a letra de "O Quereres". Chico considerou a letra formidável, só que especulava: "A bruta flor do querer você tirou de onde? Do Neruda?" E Caetano repetia: "Não, a letra é minha". E Chico: "Mas essa parte Oh, bruta flor do querer… de onde você tirou?". "A letra inteira é minha!" – respondia Caê zangado.
Viver todo ouvidos aos verborrágicos Glauber Rocha, Wally Salomão, Hélio Oiticica não poderia também ser uma tarefa fácil. Uma estudante da USP foi ao Rio entrevistar Glauber para sua tese de doutorado. Glauber detestava São Paulo, ainda mais a USP, então topou receber a moça em sua casa carioca, todos os dias. Assim que ela tocava a campainha às oito da manhã (horário estabelecido pelo artista), Glauber a atendia nu.
Só se sentia à vontade contradizendo tudo o que a USP era na época: muito Mário de Andrade e pouco Oswald de Andrade.
Aliás, Oswald até com a própria família era diferentão, curtindo passear com um de seus filhos, Rudá, para ludibriar belas mulheres e dormir com elas.
Em Sorbonne, numa palestra, Oswald escutou alguém da plateia:
– Você é o calcanhar de Aquiles da cultura brasileira!
E Oswald, talvez traumantizando-o (espero que o cara não tenha sido tão estúpido):
– Se sou o calcanhar da Aquiles da cultura brasileira, você é o chulé de Apolo!
Ao fim da vida virou mais rabugento, competindo com os filhos, jogando folhas de jornal na cara deles, desafiando-os a escrever melhor que o pai. Quando morreu, deixou uma dívida que demoraram mais de dez anos para pagar. Ele podia ser o chatão que quisesse, com seu status de furacão, todavia foi e é um dos mais espantosos artistas, inventor de um novo Brasil.
O mundo precisa das tempestades das ideias. E de seus artistas tempestuosos. Seja via Cazuza, Beethoven, Charles Mingus ou Oswald de Andrade. Mingus deu um tiro no próprio pé de espingarda, depois de voltar de uma apresentação de jazz em Nova York.
No evangelismo pré-fabricado dos dias atuais, qualquer coisa é hipossuficiência, datenização e carenteners. A vida não é mais uma aventura, é um post. Um poste para qualquer cão vira-lata… ou como disse o diretor Antônio Abujamra:
"A vida é sua, estrague-a como quiser."
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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