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GV CULT - Criatividade e Cultura

Linguagem e gênero: considerações sobre um livro pioneiro

GvCult - Uol

05/01/2021 06h36

Capa do livro "A mulher na língua do povo" de Eliane Vasconcellos

Por Bernardo Buarque de Hollanda

Em 1981, a pesquisadora Eliane Vasconcellos publicou em livro sua dissertação de mestrado, defendida na PUC-Rio e intitulada "A mulher na língua do povo". A autora utilizou o léxico popular como base para a sua observação, com uma pesquisa dividida em duas etapas: a oral e a escrita. Na primeira, a sondagem é feita através de conversação dirigida, da observação de telenovelas, de filmes nacionais, de peças teatrais e de pessoas. Na segunda, deu-se uma pesquisa indireta pela aplicação de questionários. Os informantes deveriam ter o ensino fundamental completo e estar na faixa dos 18 aos 50 anos. Esta faixa foi escolhida porque engloba pessoas consideradas adultas, emancipadas e não-velhas.

O local escolhido como campo de pesquisa foi a cidade do Rio de Janeiro, entre 1978 e 1979, em razão de sua centralidade socioeconômica e cultural. A proposta da autora não é a de analisar a postura masculina e feminina ao se expressar, mas o modo pelo qual ambas se referem estruturalmente à mulher em seu cotidiano. Assim, não se trata de um estudo sobre a diferença dialetal entre um e outro, mas do levantamento de dados usados pelos dois – homens e mulheres. O objetivo principal do livro diz respeito à demonstração, através da linguagem e de suas regras gramaticais e a seus itens lexicais, da posição secundária ocupada pela mulher na sociedade contemporânea, tendo por base a fala como índice de discriminação e inferiorização.

A afirmação da posição subalterna se justifica quando se observa a preponderância da forma masculina nas regras básicas da concordância nominal. Assim observam-se frases do dia a dia aparentemente banais: "O homem conquistou a lua"; "homens e mulheres idosos"; "o brasileiro é alegre". Tais sentenças corriqueiras têm uma característica em comum: a predominância do gênero masculino. Deve-se ressaltar, entretanto, que a palavra homem, usada como sinônimo de humanidade, não é tão genérica quanto parece. Com efeito, nota-se a tendência à exclusão da mulher do contexto histórico, como sujeito enunciador.

Por exemplo: quando se diz "o homem descobriu a cura da tuberculose", a alusão à palavra "homem" não englobará a humanidade em geral, mas sim apenas o ser humano do sexo masculino. Segundo Vasconcellos, esta interpretação advém do fator cultural que preconiza em nossa sociedade que "a mulher não é capaz de fazer descobertas de cunho científico".

Um dos estereótipos femininos mais recorrentes na linguística coloquial é aquele da "mulher como objeto". A diferença básica do modo de valorização referente ao homem e à mulher pode ser resumido desta forma: ao primeiro é enfatizada a sua capacidade intelectual, ao passo que à segunda revela-se apenas a aparência física. A pesquisa levanta termos de confirmação do estereótipo feminino, conforme compila a autora: amorzinho, atraente, boa, boazuda, bonita, bonitona, broa, chuchu, é uma beleza!, engraçadinha, fofinha, fofura, gata, gostosa, uma graça, gracinha, linda, linda de morrer, lindinha, lindona, pantera, paixão, tesão, tesãozinho, tesuda, uva, Vênus, você é um doce.

Dos 29 termos usados para elogiar o físico feminino, observa-se que 18 têm conotações sexuais. Ademais, através de expressões em princípio equivalentes – homem da rua e mulher da rua – identifica-se aqui também a depreciação conferida à mulher no linguajar cotidiano, visto que as frases possuem um significado distinto. Identificam-se, pois, duas condutas sexuais diferenciadas de tratamento. Uma permissiva para ele, outra restritiva para ela, a exemplo dos relacionamentos extraconjugais.

O reino das palavras estudado reconheceu igualmente a existência de lexias depreciativas de duplo valor: cachorro-cadela, cavalo-égua, galo-galinha, touro-vaca, gato-gata, coelho-coelha, piranha, sogro-sogra, genro-nora. O ponto culminante da ideologia do duplo valor é a acepção de virgindade. Novamente, enquanto para o homem esta lexia lhe é censurada, à mulher a palavra contém um sentido positivo, sendo a preservação da virgindade estimulada pela sociedade. Numa palavra: a moral do duplo valor ultrapassa o campo sexual e estende-se também ao campo social.

A passividade é outra categoria imposta à mulher. Segundo a pesquisa, datada de final dos anos 1970, os homens via de regra não gostam das mulheres autônomas e decididas. Numa análise dos verbos que se referem ao ato sexual, o homem é sempre o ativo e a mulher, a passiva. A autora percebe esta característica divisora dos gêneros no ato de conquistar. A mulher, observa à época da investigação, não conquista, tem de ser conquistada. Para confirmar a assertiva, Eliane Vasconcelos capta expressões vulgares do tipo: encomendar bebê, ganhar bebê, "ele fez um filho nela".

O livro "A mulher na língua do povo" deseja mostrar de que modo a cultura impõe um etos de subordinação da mulher ao homem. Tal dependência inicia-se na infância, quando a mulher recebe uma educação voltada para a reprodução e perpetuação dos valores dominantes. Durante a fase adulta, vemos como esta dependência se acentua no momento que a mulher é coagida a se casar. A mulher solteira é tida como exceção à regra, já que o casamento representa a continuidade da vinculação da mulher ao homem.

A autora mostra como os sexos são educados de maneira diferente. A educação volta-se para a diferenciação de comportamento tanto social quanto sexual. De acordo com tal mentalidade, o menino é cultivado para ser o futuro "chefe da casa", provedor, ao passo que a menina é criada para se tornar a "rainha do lar". As formas de entretenimento são bastante diferentes e não se imiscuem. Ou seja, ao primeiro é vedado brincar de boneca, enquanto à menina repreende-se o jogo de futebol.

Consoante as palavras de Eliane Vasconcellos: "Assim sendo, na infância, quando os agentes socializadores terminam o seu papel, o destino que o menino e a menina deverão seguir já se encontra rigidamente passado". A tradição consagra que a mulher nasceu para ser esposa e mãe. O casamento representa a materialização dessa dependência, uma vez que a mulher acopla o nome do marido ao seu. Assim, a mulher perde sua individualidade passando a ser a Sra. Gomes ou a Sra. Paulo Egydio Martins. Mesmo após a morte do marido a mulher sendo dependente dele, pois passa a figurar como "a viúva de X"…

Nos anos 1970, conforme investiga a pesquisadora, a mulher solteira é mal vista pela sociedade por estar fora dos moldes impostos por ela. Já ao homem é permitido casar em qualquer época e até mesmo permanecer solteiro. A mulher que não casa é vista de modo pejorativo como aquela que está "sobrando", segundo a autora, tem sua imagem associada negativamente. O homem é solteiro por opção, e não falta de escolha.

A pesquisa reconhece ainda que marido e mulher são termos assimétricos. O falante do português que emprega "marido" não usa necessariamente a palavra "mulher". Esta é, em determinadas ocasiões, chamada de maneira depreciativa de fêmea ou prostituta. Outros termos de quando em quando acionados são: senhora, patroa, cara-metade, metade da laranja e esposa. O casamento é um ato social a que apenas as mulheres aspiram. Homem, no senso-comum, não gosta de casamento. Já a mulher só é digna quando está casada. Há ainda a crença religiosa num santo casamenteiro.

Por fim, há uma tolerância quanto ao homem adúltero, mas quase não há indulgência para a mulher com o mesmo comportamento. A sociedade patriarcal tem na mulher seu esteio moral. A mulher traída não é merecedora de pena. Já o homem é chamado chula e impiedosamente de "corno". Trata-se de uma humilhação, de uma ofensa à sua hombridade e dignidade. O código penal reflete, de certa forma, este conceito popular, ao aludir à legítima defesa da honra.

A dissertação de Eliane foi produzida em fins dos anos 1970. Passados mais de 40 anos, o que mudou de lá para cá? O que houve de mudança na linguagem de tratamento dos gêneros? Quão resilientes são no tempo as expressões vocabulares? Eis perguntas que merecem uma nova tese investigativa…

Edição Final: Guilherme Mazzeo

 

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.