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Surrealidades relevantes – por Vítor Steinberg

GvCult - Uol

02/10/2020 07h23

"Argus" (1981), de Salvador Dalí

Por Vítor Steinberg

Enquanto, há um século, Salvador Dalí curtia fazer amor com um morcego solto em seu quarto, o mundo não estava preparado ao legítimo surrealismo do século XXI. A começar que 21 é número cabalístico e, para azar dos hippies, a Era de Aquário nada mais significaria do que o advento da internet. A gente tenta aceitar que ela é fofa e bem-quista, mas se quebra a tela do celular ou o cpu pifa – e para consertá-lo é quase o olho da cara – nossos nervos afloram apavorados com a ameaça da miséria digital.

Acabaram-se os olhos da cara, agora só está disponível o terceiro olho. Você venderia seu terceiro olho para comprar alguma coisa? Tudo isso soa muito surreal. As redes sociais tanto deprimem quanto nos deixam ansiosos, com um "buraco" no estômago, sentimos que não estamos fazendo a coisa certa, agindo como deveríamos, produzindo na frequência que deveríamos. Deveríamos o quê?

Ao invés de "viver instensamente o presente" como o Instagram se autodefine (como um convite eterno à aventura), a realidade é que apenas contemplamos o passado, particularidade inata à fotografia. Feed do Instagram é um triste museu, um imenso cemitério.

Há uma nova doença que causa ansiedade: a pessoa não sente que seu celular está por perto. Como se o sujeito despencasse de um abismo, sentindo um frio na barriga surgindo e alarmando: "não tenho celular!", ao passo que o cérebro reconhece o aparelho como uma parte nova do corpo. Se o membro for amputado, você é assombrado pelo seu fantasma motor-sensorial, na medicina, a Dor Fantasma.

Mário de Sá-Carneiro: "Onde existo, que não existo em mim?"

As surrealidades, hoje, estão emergindo como lagostas em formato de telefone. Dalí provavelmente ganharia o papel de Imperador da Galáxia Shaddam IV – e nem precisaria fazer parte do elenco do filme Duna. O Villeneuve lançará o seu em dezembro – e pelo trailer já se sente saudade do imenso projeto de Jodorowski.

(O documentário sobre este projeto está na íntegra no YouTube).

Hollywood está preguiçosa, young-adult, costuma adaptar mais quadrinhos e livros infanto-juvenis do que grandíssima literatura. Duna e Star Wars são cartunescos e "romances de formação", por assim dizer. Seria mais interessante Hollywood debruçada sobre a literatura alemã.

Fazer um Werther, por exemplo.

No fim é Buñuel quem tem vantagem hoje em dia. Basta de filme que leva tudo muito a sério, são chatos. A Netflix escorrega, repetitiva, sempre com elenco, direção de arte (principalmente os de época) extraordinários, entretanto os filmes e roteiros são horríveis.

Buñuel tinha que ser nosso maestro, mais que nunca.

Inspirado e surrealizado por uma cena de "Esse Obscuro Objeto do Desejo" (1977) e além das altas leituras de Mário de Sá-Carneiro na quarentena infinita (suprimida da menor aristocracia), sigamos nossa lista filosófica-provocativa de como lidar com as coisas na sua vida e enxergar sua vida nas coisas:

– Na cena que me refiro, uma mulher diz a um senhor: "Você não aguenta me amar!? Então por que não se suicidou na última noite!?". Dito isto, e homenagenado Mário de Sá-Carneiro, é importante salientar: se uma paixão que você tem, a paixão da sua vida, descortinadora de sorrisos em sua cara, por mais forte e inexplicável que seja, não te fazer "abotoar o paletó" (morrer), você sobreviverá. Machucado, mas sobreviverá. Bem machucado, mas sim. Se a paixão é forte demais não tem vida que aguenta… Vide Tristão e Isolda, Romeu e Julieta. Não dá.

– Stalinismos a parte, provoco: a esquerda ainda não teve chance de governar, portanto não tem "histórico", nem história. Segue sendo uma visão sufocada pelas razões históricas, continuamente sobrepujadas pelos acumuladores financeiros. Sem o exemplo histórico, o eleitor não quer acreditar em sua credibilidade. Nunca deixaram a esquerda governar e, assim, entrar para a história.  A história na qual a "direita" se desvincula para parecer nova e moderna é Narciso olhando ao seu próprio espelho.

– É sabido que Sine qua non é uma expressão latina lá das antigas, significando "Sem o qual não pode ser". Podemos criar um movimento artístico-poético-filosófico social-democrático intitulado Cine qua non?

– Assinei Disney+ e há um relaxante protetor de tela, banhado a montagens silenciosas e sensoriais das animações do estúdio, em que você pode escolher: noite serena, cidades futuristas, florestas chuvosas, biblioteca acolhedora, o clima que você dispor para seu momento. Chama-se Zenimation.

Instagram do autor @steinberg__

Edição Final: Guilherme Mazzeo

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.