Mentes e Lembranças – por Vítor Steinberg
Por Vítor Steinberg
Por que, quase vinte anos sem lançar um longa-metragem, Charlie Kaufman faz o melhor filme de 2020? Ok, uns vão citar a animação Anomalisa, de 2015, então seriam cinco anos. Mas considero que seu último filme de destaque foi Adaptação (2002), bem mais sobressaído comercialmente do que Sinédoque Nova York (2008).
Este nem passou pelos cinemas! Enquanto vemos o tempo desvanecer-se "arrepiando xizes no veludo da almofada" (frase de Monteiro Lobato), aparece Estou pensando em acabar com tudo (2020) online na Netflix. Escavando nossa alma sem pedir licensa, o longa toca vários enigmas outrora lançados ao mundo por Kaufman. É certo que o roteirista foi sendo cada vez mais hermético, subjetivo, em sua trajetória. Isso tornou seu trabalho quase incomunicável, e menos comercial. Lembro da preguiça de amigos para assistir Sinédoque e depois, Anomalisa.
De Quero Ser John Malkovich a Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, é notável o curso de enclausuramento intelectual do artista. A maior dificuldade em sua transtornada mente seria um dia ter que adaptar um roteiro para o cinema. Adaptação brinca com essa ideia.
O sujeito moderno geninho acaba por se perder, não tem outra. Ele é muito pouco amado eroticamente (nem mesmo por pseudo-sapiossexuais) e quase perde seu posto de protegée por alguma produtora. Mozart, Beethoven não se perderam tanto, até o fim da vida foram coerentes no trabalho, possuíam mais afabilidade erótica do que Charlie. Não é mais incrível – nem erótico – ser um gênio como há 250 anos.
O título do livro e do filme "Estou pensando em acabar com tudo" remete ao universo de Kaufman, ele sempre pensou no suicídio. E fins de relacionamento, de regra com Manic Pixies Dream Grils (moças bonitas, sapiossexuais, que tocam Bach, são legais e só existem na cabeça de roteiristas). Em Brilho Eterno… basicamente debruça-se a vontade de apagarmos nosso passado com alguém.
Muito criticado por suar demasiadamente, Kaufman sofre preconceitos do nerd subjetivo: fora de forma, mal vestido, tímido. Pegam pesado quando reprocham que ele sua muito, principalmente no calor da Califórnia. As pessoas invocam com quem sua, como se fosse uma característica de nerds, aderente, já no pacote. Detesto gente que vê o mundo em pacotes. E se enojam com o sofrimento irracional do outro.
Então Kaufman deve ter lido o livro de Iain Reid e pensou: este aqui consigo adaptar e não sofrer tanto quanto no filme de 2002.
Pela roadtrip na nevasaca, à deriva, quase na escuridão dos mais recônditos labirintos de nossa mente – entre passado, presente, futuro, fantasia e memória – Kaufman nos entrega uma delicada lanterna para nossa delicada existência. E o que melhor poderia fazer um roteirista – traduzir isso em palavras. Saem da cidade e tudo vira fazenda… isso é demais.
"Não se pode forjar um pensamento" – frase do capítulo 1 do livro de Reid. Poetizar o mundo, isso sim. E que poema é aquele de "quando você chega em casa"? Achei um dos mais bonitos da atualidade. Tão verdadeiro, como diz Jake. E tão sem esperança, como é Kaufman. Vídeos no YouTube tantem desvendar o roteiro, dizendo que tudo é da cabeça de Jake. Isso que é legal em Kaufman, você sempre mergulha dentro da cabeça de alguém, como num musical, num teatro, num show de marionetes.
Estou pensando é um bom filme porque Kaufman consegue mexer com coisas muito difícieis e complexas e traduzir de maneira fofa e não menos perturbadora.
Enumero alguns desses assuntos extremos e difíceis:
1 – É inaceitável ser poeta neste século. É muito difícil assumir-se como tal. É mais difícil ainda criar uma personagem poeta que seja aceitável. Talvez Jovem Mulher seja a personagem mais difícil criada na última década. Ela tem inúmeras outras profissões, citadas no decorrer da viagem. Mas não é a toa que também é poeta.
2 – Jovem Mulher recebe ligações no i-Phone de si mesma, o tempo todo. Mas não sabemos seu nome de verdade. Nem sua profissão. É poeta.
3 – Geralmente lembramos de um animal do passado (pet, cão, gato) efetuando somente um movimento. Filósofos chamam de "perfil" – um lado apenas, uma ação apenas, em nossa memória. O cachorro chacoalhando em looping nos entrega que tudo aquilo faz parte de uma lembrança – inventada ou não.
4 – O musical Oklahoma! É antigo, brega, mas não é ruim. É muito encenado nas escolas norte-americanas, contém algo de tradicional, regionalista, de contar a história do país. Um país jovem que ainda não envelheceu, mas muita coisa está sob pesada maquiagem de velhice. Até na nossa própria mente. Que maneira bonita de demonstrar o declínio de um império.
5 – O filme dentro do filme é dirigido por Robert Zemeckis, diretor de Forrest Gump, De Volta Para o Futuro, entre outros mega sucessos. Não é tão famoso quanto Spielberg, mas realizou filmes tais quais famosíssimos. Hollywood está despencando. Inserí-lo ali no fim da comédia romântica é mexer com vespeiros dos mais curiosos. Estende-se isso aos pais de Jake, dois grandes atores, demonstrando a caricatura absurda da psiquê de uma família.
6 – O velho zelador da escola… quem é ele? Porque não nos incomodamos com ele? Nos familiarizamos com ele… Seria Jake? E aquela corrida estilo "O Iluminado" pelos corredores da escola, com o porco tapa-sexo? Como diz o Xico Sá, no frio chicabon da solidão. A maioria das pessoas são solitárias, amigo. Não têm nada, ninguém, nem beleza, nem carinho. A enorme maioria das pessoas deste mundo é infeliz, zero autoestima, diametralmente opostas a posts da felicidade do instagram e vídeos sedutores de mocinhas no TikTok.
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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