Música popular: de olho na fresta

Por Bernardo Buarque de Hollanda
"Petrificar o absurdo como um mal eterno do Brasil"
Roberto Schwarz
O título da coluna de hoje faz alusão a um livro de 1977, lançado pelo sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos, por meio da finada Editora Graal. À época, o autor, hoje professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), concluía seu doutoramento em Sociologia na Universidade de São Paulo (USP), sob orientação de Gabriel Cohn.
O livro debate o fenômeno da tropicália. Infelizmente, a obra encontra-se esgotada, não foi reeditada e apenas os críticos e historiadores de música conhecem-na. Em razão disto, numa espécie de pot-pourri, resolvi aqui homenagear este trabalho extraordinário, com uma compilação de algumas das passagens antológicas do livro acerca do tropicalismo.
Lembre-se de que esta refere-se ao contexto de fins dos anos 1960, quando, entre outros acontecimentos, Gilberto Gil e Torquato Neto compõem Geleia geral, sexta faixa para o lado A do disco "Tropicália ou Panis et Circensis". Se se reparar bem, o desenho da capa do livro de Gilberto Vasconcellos traz o rosto do segundo compositor, o piauiense Torquato Neto. O título da canção alude a um contraste: geleia se antepõe a sólido, enquanto geral opõe-se a singular.
A alegria é a prova dos nove
E a tristeza é teu porto seguro
Minha terra é onde o sol é mais limpo
E Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora na selva selvagem
Pindorama – país do futuro
Na letra da canção, Pindorama, por suposto, é uma referência ao passado de pré-colonização ('tumbadora na selva selvagem'), e ao mito edênico que presidira a aventura na América. Pindorama, país do futuro – nome dado ao Brasil pelo tupi-guarani e citado várias vezes no manifesto antropofágico de Oswald de Andrade.
Eis a antologia que selecionamos:
"Para Oswald, o problema era de início o mesmo colocado por Dada, mas em termos: tratava-se de questionar também a cultura ocidental, mas numa de suas facetas que era impossível para um europeu compreender suficientemente: questionar a cultura ocidental naquele que ela significou como imposição e destruição de valores nativos no processo de colonização do Novo Mundo". (p. 5)
"A conjunção de elementos díspares e não a sua exclusão, como lhes ensinava Oswald. Glauber Rocha traduziu a experiência em provérbio lapidar: entre a usina hidrelétrica e o luar do sertão, não há dúvida possível – fica-se com os dois". (p. 8)
"O essencial é perceber que às vezes certas posturas radicais carregam em si tal dose de europeocentrismo que, ao se rebaterem contra o objeto 'brasileiro' revolucionário, simplesmente porque não segue de perto o modelo, minimiza-o, a ponto mesmo de aniquilar o seu potencial guerreiro" (p. 12).
"Hoje, temos conhecimento da raiz sociológica desse fenômeno: a ausência de um público alfabetizado deu à classe social dominante a oportunidade de exageradamente desenvolver o gosto pela retórica, o culto da personalidade e do doutor, os jogos de espírito sempre encarados numa perspectiva meramente ornamental". (p. 27)
"Vemos então que o caráter híbrido e de deboche da música aumenta ainda mais, numa verdadeira visão caleidoscópica da realidade brasileira. Vale dizer: do mundo pré-civilizado (antes da ingerência colonialista) irrompe o texto como uma crítica à contemporaneidade brasileira, quer em seu aspecto cultural, quer no seu aspecto de denúncia política". (p. 31)
"…iremos conduzir entretanto a análise em torno à cristalização da história recente do país na criação de alguns setores da canção popular. Noutros termos, queremos saber como a sociedade se objetiva na estrutura da canção". (p. 39)
"Por outro lado, em Épico, a faixa mais inventiva de Araçá Azul, e que traz um arranjo de Rogério Duprat, Caetano se vale do readymade para tocar de maneira crítica na raiz do divertissement, essa ideológica função musical que tantos vínculos mantém com os efeitos da divisão social do trabalho". (p. 41)
"Mas em seu empenho de veicular uma mensagem de 'conteúdo participante', a canção de protesto cometeu o equívoco de relegar a segundo plano o que é fundamental na música: sua dimensão estética". (p. 42)
"No âmbito da crítica musical, o sociologismo vulgar reinou soberano: fulano de tal possui curso universitário, tem origem de classe média; portanto, sua música é ruim, alienante…" (p. 43)
"Caetano Veloso mostrou o fato que se repete volta e meia na história da arte moderna, a saber: quanto mais um movimento se impregna na totalidade social, mais tende a se despojar de criatividade estética e contundência crítica". (p. 46)
"Enquanto a produção econômica estiver submetida às injunções heteronômicas, o nosso desenvolvimento apresentará sempre caráter contraditório e ambivalente. Por isso mesmo a tropicália, tal como Oswald de Andrade, não perdeu de vista a ambivalência sociológica que cerca entre nós a noção de moderno". (p. 49)
"À maneira do filósofo húngaro (Gÿorgy Lukács), para quem a obra de arte é a um tempo a descoberta do núcleo da vida e crítica da vida, Schwarz espera da produção artística (no caso, da canção tropicalista) que ela capte esteticamente a totalidade dinâmica das determinações essenciais da realidade, isto é, que vá além de certos sintomas de uma superfície imediata que oferece o capitalismo contemporâneo". (p. 51)
"… a sensação de que o absurdo toma conta da gente é inevitável quando tranca a história e quarta-feira de cinzas abate o país. Ou até mesmo justificar o eclipse desesperado do futuro nas canções tropicalistas com base na retomada do raciocínio diabólico de Oswald: o contrário do burguês no Brasil ainda não é o proletário, mas o boêmio". (p. 54)
"O inconformismo, nos ensina Lukács, que se depreende da atitude vanguardista é puramente formal, de fachada. A vanguarda muitas vezes apresenta hostilidade ao mundo em que se vive e, ao mesmo tempo, o desejo de viver bem com ele, ou pelo menos tranquilamente". (p. 66)
"Seria oportuno lembrar aqui que nem todo culto ou uso da polivalência metafórica traduz uma operação inventiva da linguagem, isto é, que pode existir também pseudo-libertadora em torno da metáfora". (p. 67)
"A presença do boi em nosso folclore traduz um fato sociológico relevante: o povo agarrado aos aspectos rudimentares da sobrevivência". (p. 22)
"… onde a solidão da famosa estrela aparece enlaçada com a nossa própria solidão e o mito sexual que nos impinge, a todos, a indústria cultural". (p. 77)
"Milton Nascimento parece ter sacado essa fantasmagoria quando, num lance irônico, disse: o Brasil estava vazio na tarde de domingo né / Olha o sambão / Aqui é o país do futebol". (p. 78)
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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