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Etnologia indígena no Brasil(I): contribuição de Eduardo Viveiros de Castro

GvCult - Uol

18/02/2020 08h03

Líderes indígenas com a ex-presidente Dilma Rousseff. Fonte: Imagens da Internet

Por Bernardo Buarque de Hollanda

Minha graduação em Ciências Sociais nos anos 1990 foi marcada pela descoberta e pelo encantamento com a Antropologia. Ainda que não tenha trilhado o caminho dos antropólogos na pós-graduação, procuro ler e seguir a produção dessa área, com vívido interesse. Embora sem cursar mestrado nem doutorado nessa área, ainda durante a graduação pude entretanto fazer minha iniciação científica no Núcleo de Etnologia Indígena, sob orientação do antropólogo Marco Antônio Gonçalves (NEI/UFRJ).

Isso deu-se em meados dos anos 1990 e minha tarefa consistia em desenvolver pesquisa na biblioteca do Museu do Índio, na aprazível Rua das Palmeiras, no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. Todas as tardes eu dirigia-me ao espaço para ler e catalogar dissertações e teses defendidas no Brasil e no exterior sobre índios brasileiros. Antes da época da digitalização, o propósito do projeto Índios em teses, coordenado pelo professor Marco Antônio, era reunir toda a produção sobre a temática indígena em uma única obra de referência.

Na condição de bolsista de iniciação científica, cabia a mim, após a leitura – à época eram quase duzentas teses sobre o assunto – produzir uma súmula catalográfica, com uma lauda de extensão, a fim de dar ao interessado uma orientação sobre o conteúdo das obras. Ao final, o catálogo constituiria uma espécie de guia para a futura consulta de pesquisadores. A coluna desta e da próxima quinzena dedica-se a revisitar duas das teses cujas leituras muito me impactaram.

Conquanto cada uma delas tenha abordagens distintas do ponto de vista da teoria antropológica, guardo na lembrança quão instigantes foram para mim esses trabalhos, no sentido de melhor entender a delicada questão dos índios no Brasil – com população original de 4 milhões de pessoas, em 1500, mas na atualidade reduzidos a 900 mil –, hoje ainda mais ameaçados por uma conjuntura política persecutória de suas terras, com graves ameaças à integridade física dos remanescentes aborígenes brasileiros.

A primeira obra a ser abordada é de autoria de Eduardo Viveiros de Castro, atualmente reputado como um dos maiores teóricos da etnologia no país. É dele do conceito de perspectivismo e o autor é considerado grande conhecedor da obra de Claude Lévi-Strauss, reconhecido por este próprio como um de seus mais abalizados interlocutores. De sua produção densa, avulta a coletânea A inconstância da alma selvagem, publicado em 2002 pela luxuosa editora Cosac & Naify.  

A tese original de que vamos falar na presente coluna intitula-se Araweté – os deuses canibais e foi publicada em livro no ano de 1986, pela editora Jorge Zahar, tendo conhecido mais de uma edição, inclusive com versão em inglês: From the enemy's point of view: humanity and divinity in an Amazonian society, com tradução de Catherine V. Howard.

De que trata a tese? Grosso modo, sua intenção geral consiste em relatar a vivência, o trabalho de campo e as teorizações possíveis sobre os Araweté, sociedade indígena tupi-guarani, com aproximadamente duzentos habitantes, localizada numa região denominada Ipixuna, que compreende os estados da Amazônia e do Maranhão. A etnografia foi feita durante os anos 1980 e se estendeu até o decênio seguinte.

O relato apreende a organização da vida dos Araweté no que tange ao parentesco e aos aspectos da vida espiritual, social, matrimonial e temporal que regem o cotidiano desse grupo. Viveiros de Castro cinge-se à descrição das ações e dos pensamentos dos Araweté, com base naquilo que observa e que é dito pelos mesmos, com vistas a compreender como se dá a construção da pessoa entre esses nativos.

Para ilustrar o tipo de observação, o autor diferencia as atividades das mulheres daquelas empreendidas pelos homens, enuncia a idade em que se iniciam nas relações sexuais, atribui importância que o nome de um indivíduo contém e o que o mesmo significa para a sociedade. Ademais, percebe as mudanças que o casamento acarreta na vida daqueles que se unem e mostra a função do pajé e da religiosidade na relação entre mortos e vivos.

Trata-se de tese ancorada em um trabalho de cunho etnográfico por excelência. Tal fato possibilita pensar a relação, conceituada pelo antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, entre o antropólogo "intelectualista" e o "empirista". O fato de ser uma etnografia não configura, de modo automático, a qualificação desta tese de empirista, pois conforme entende Clifford Geertz, "os antropólogos não estudam aldeias, mas em aldeias". Entretanto, há outras características desta monografia que me fazem abalançar pelo segundo conceito.

O conteúdo empirista aparece na ênfase dada aos costumes e aos mitos cultivados pelos Araweté. Baseia-se para tanto em entrevistas e em relatos tomados diretamente no contato com os índios. Embora Viveiros de Castro já àquela época não seguisse o paradigma empírico tout court, a ação precípua esperada deste é não inferir nem interferir, é abstrair-se de conclusões ou de questões mais amplas, tal como reivindicadas por um intelectualista da linha racionalista. Não se quer tampouco propor interpretações especulativas nem estabelecer relações de intersubjetividade, que caracterizam os seguidores da hermenêutica.

Cardoso de Oliveira propõe ainda uma dicotomia cara à antropologia estrutural, e que pode ser útil à apreensão da perspectiva de Viveiros de Castro. Trata-se do par sincronia/diacronia. No caso dos Araweté, a abordagem enfatiza o polo sincrônico, ao abordar a vida do grupo com base no tempo presente, excluindo a dimensão temporal, quiçá a via evolutiva da religião, para tratar das relações espaciais e sociais indígenas. A sincronia, pois, é a abordagem que preconiza os fatos despidos de perspectivas históricas capazes de retraçar as origens do fenômeno.

A obra de Viveiros de Castro suscita ainda outro enquadramento antropológico. Desta feita, faz-se referência ao termo "linhagem", levantado por outra antropóloga, Mariza Peirano. Possuiria o trabalho de Viveiros alguma linhagem? Vejamos, antes de tudo, o que se entende pelo termo.

Linhagem em antropologia erige-se da conjugação de três elementos: a leitura de teorias e conceitos antropológicos; a vinculação a monografias clássicas da etnografia; e a realização de pesquisa de campo autoral. A partir desse esquadro, os antropólogos aderem a esta ou aquela corrente de pensamento, a fim de lidar com as questões características da disciplina, como a metodologia e as diferenças culturais. A indissociação da pesquisa com a análise teórica configura, em vista disso, o que se entende por linhagem.

Em face da conceituação, é lícito concluir que a leitura dos Araweté não se filia de modo explícito a uma explicita linhagem, haja vista a abdicação do aprofundamento teórico, pois a pesquisa teve o foco voltado ao trabalho etnográfico. Não obstante, salta à vista a inclinação pela linhagem levistraussiana, porquanto a tese dedica especial atenção às relações de parentesco e à cosmologia deste povo indígena. Em adendo, confere primazia à observação das representações dos pajés, ao papel da música no rito do grupo, às canções e até mesmo ao fumo.

Para corroborar a assertiva, terminemos pinçando duas breves passagens do livro, ilustrativos das preocupações do autor:

 

"As formas de cooperação econômica, os arranjos residenciais, os alinhamentos políticos – tudo isto é função das relações de parentesco, por consanguinidade ou afinidade, entre as pessoas. O casamento não é uma simples união entre os dois indivíduos, mas uma aliança entre suas respectivas parentelas…" (…) "A música dos deuses é a área mais complexa da cultura araweté. Única fonte de informação sobre o estado atual do cosmos e a situação dos mortos, ela é o rito central da vida do grupo".    

Edição Final: Guilherme Mazzeo.

 

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.