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GV CULT - Criatividade e Cultura

Desvio&divergência (I)Howard Becker: clássico da sociologia norte-americana

GvCult - Uol

21/01/2020 05h52


"Celebrado na França, o estudioso de piano mudou a forma como pensamos em "desvio".  Ilustração: Simon Prades/Fonte: newyorker.com

Por Bernardo Buarque de Hollanda

A série de hoje e da próxima quinzena discute um conjunto de questões, que podem ser arroladas da seguinte forma: o que é desvio, por que ele existe, de que forma se desenvolve o comportamento desviante? Quais são os seus tipos principais? Que relações se estabelecem entre os grupos considerados normais com aqueles denominados desviantes?

Para responder a tal intento, procurarei descrever como o sociólogo estadunidense Howard Becker, nascido em 1928 e vinculado à famosa Escola de Chicago, compreende e desenvolve suas principais ideias a respeito de tais assuntos.

Becker afirma, primeiramente, que o desvio surge devido à própria necessidade de organização e de funcionamento de uma sociedade, de um grupo social ou de uma instituição em questão. Qualquer grupo social organizado precisa impor determinados padrões usuais de comportamento às pessoas que o constituem, a fim de que o grupo possa alcançar seus objetivos. À medida que emergem desta organização indivíduos ou subgrupos que não agem de forma adequada às normas consideradas corretas, estabelece-se o que denominamos desvio.

No entanto, essa definição propicia alguns questionamentos. Será que a incapacidade de uma pessoa obedecer às regras propostas pelo grupo é um fracasso inerentemente pessoal? É, como alguns chamam, uma doença de cariz patológica? Ou o desvio evidencia a inexistência de consenso a respeito dos objetivos propostos e em relação ao que se considera certo ou errado pelo grupo/meio? A sociedade pode ser concebida como um conjunto estável e harmônico de relações sociais? Ou ela se caracteriza como um conjunto de diferentes grupos com distintos – às vezes incompatíveis – interesses, que entram em conflito na proporção em que buscam impor as suas regras grupais sobre as demais?

No que tange ao caráter impositivo das regras, há de se acrescentar que esta acontece em dois níveis: o primeiro ocorre quando um grupo dita determinados tipos de comportamento sobre outro e o segundo quando facções de uma ala entram em discordância interna quanto às normas a serem estabelecidas. Neste caso, uma delas, ao final da contenda, mais ou menos aberta, obtém a supremacia em detrimento das demais. A palavra grupo, nesse diapasão, pode englobar linhas de classes sociais, linhagens étnicas, ocupacionais ou culturais as mais diversas. 

Além dessas discussões que dimensionam os aspectos patológicos, normativos e conflitivos do desvio, existe a perspectiva que considera a relatividade do comportamento dito normal e do marginal. A crença na existência de ações certas e erradas revela que tais julgamentos são variáveis e encontram-se na estrita dependência de um ponto de vista. A percepção de muitos, por exemplo, de que o homossexualismo foge à lógica do comportamento normal negligencia a própria visão das pessoas que o praticam, rotulando essa conduta como se houvesse uma verdade prescritiva e absoluta para todos.

Contudo, encontra-se em Howard Becker um enfoque sociológico adequado à matização não preconceituosa do conceito de desvio. A Sociologia não se apresenta preocupada quanto à natureza da ação julgada marginal em si nem quanto à discussão da existência ou não de uma essência última para qualificar o ato desviante. Esta disciplina das Ciências Sociais fundamenta sua perspectiva com base na suposição de que o desvio é ele próprio uma criação/convenção social e que a sociedade a mantém – ou manipula – como estratégia de coesão da mesma.

Em outras palavras, um indivíduo só é identificado como transgressor pelo fato de que outras pessoas desaprovam seu comportamento público. Logo, pode-se perceber que atos considerados impróprios não são punidos caso não sejam descobertos ou revelados. Em contrapartida, da mesma maneira, ações julgadas legais podem ser confundidas e consideradas de forma análoga às ilegais.

Becker salienta que a atitude desviante é mais uma consequência das respostas dos indivíduos a um ato do que uma característica inerente à ação. O autor procura estabelecer um quadro de referência com vistas à consecução de uma tipologia de desvios. Entretanto, parte da premissa de que um indivíduo pode-se conformar ou não com uma regra particular, sem discutir se há validade da norma para todos. Becker estipula quatro tipos comportamentais básicos: o de conformidade, o de desobediência, o desviante despercebido e, por fim, não-desviante visto, todavia, como tal.

Após a enunciação da tipologia das ações, o sociólogo estadunidense vale-se das regras usuais de conduta para ampliar a discussão nesse terreno. O debate fundamenta-se na compreensão do desvio e nos fatores que propiciam tal tipo de procedimento. Ressalta que, para o entendimento de determinada inconformidade, não se deve estudar o desvio nos termos em que se encontra posto, como modelo acabado, instituído socialmente. Ao contrário, é mister que se reconstrua todo o percurso social acumulado pela pessoa para que se compreendam as suas atitudes finais, que são as de transgressão. Com base no aspecto temporal-evolutivo da específica conduta, deve-se examinar o processo contíguo que se opera no indivíduo e que o leva ao estágio liminar em que se encontra.

Assim sendo, temos de saber qual a motivação última que impele o indivíduo ao desvio. Deve-se atinar para o que o afasta das regras de conduta seguidas pela maioria das pessoas. É preciso destacar que a motivação pode ser estimulada por razões intencionais ou inintencionais. Aqueles atos de que o indivíduo desconhece as causas de seu comportamento divergente são explicados por duas teorias principais.

Uma, de caráter psicológico, atribui a alguém certas ações tidas como necessidades inconscientes que se encontram, por meio desses atos, satisfeitas. A outra teoria, de tendência sociológica, postula que o desvio resulta de fatores sociais estruturados, conducentes do indivíduo. Estes levam-no a agir de forma considerada ilegal, para que o mesmo alcance seus objetivos. Por exemplo, o uso de entorpecentes depende especificamente de sua posição na sociedade e do acesso que tem ao produto.

O autor explica ainda que a maioria dos indivíduos numa sociedade possui o desejo de agir de maneira desviante, o que, no entanto, não é realizado devido à internalização dos deveres a cumprir e do entendimento de que o ato divergente acarretará consequências maléficas ao seu futuro. Logo, a motivação que surge num ato não conformista intencional tem de ser estimulada por um benefício que compense a dificuldade encontrada pela quebra de uma norma convencional.

Uma das dificuldades encontradas pelas pessoas que transgridam normas é a estigmatização que sofrem. Sendo um desviante "descoberto", ele passa a ser discriminado ou rejeitado pelas pessoas com quem interage, o que assume consequências imprevisíveis, o mais das vezes nefastas a quem o pratica. O indivíduo possuidor, por conseguinte, do status de desviante tem as suas ações depreciadas e generalizadas.

Em seguida, Becker afirma que muitos atos de desvio são motivados no indivíduo com base na interação deste com pessoas que agem também de maneira anticonformista. Dito de outro modo, tais comportamentos podem ser apreendidos e reproduzidos socialmente, graças à proximidade e à associação com outros que sofrem ou cultivam o mesmo estigma.

O último aspecto a que o sociólogo norte-americano refere-se sucede quando o indivíduo toma parte em uma organização cujo etos vincula-se a determinada ação de tipo marginal. Neste caso, há a legitimação do comportamento na medida em que se justificam as causas e as razões pelas quais os homens procedem daquela maneira. Percebe-se também que os indivíduos sentem-se menos indefesos, pois compartilham do mesmo "problema" e podem construir, valendo-se disto, uma identidade em comum. Os estigmatizados convertem-se, pois, numa coletividade com feições endogâmicas.

Diante do arrazoado acima exposto, pode-se estipular a proposta conceitual beckeriana muito apropriada à compreensão não maniqueísta do fenômeno. Ela concorre para a elucidação, porquanto descreve o histórico do problema, matiza generalidades pré-concebidas e ancora as teorias subjacentes ao conceito em discussão. Considera-se também o pensamento em questão bem desenvolvido, na medida em que amplia e enriquece o debate, com a introdução original à época de uma visada sociológica sobre o assunto.

Uma crítica que se pode apontar é certa incapacidade do autor de explicar por que motivos uma pessoa age de maneira julgada desviante e depois desiste de proceder de tal maneira, voltando a uma conduta tipificada por padrão. Na esteira dessa interpelação, segue-se a crítica de que Howard Becker não tratou, quando menciona agrupamentos organizados, a existência de instituições que atuam justamente para recuperar indivíduos desviantes, ou ao menos cria laços de solidariedade entre eles, a exemplo de associações como os Alcoólicos Anônimos.  

Voltaremos a essa discussão na próxima quinzena, com a convocação para o debate do antropólogo brasileiro Gilberto Velho, um dos mais talentosos discípulos de Howard Becker.

Edição Final: Guilherme Mazzeo

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.