Os fuzis – um filme de Ruy Guerra
Por Bernardo Buarque de Hollanda
"Nenhuma estatística pode informar a dimensão da fome"
Glauber Rocha
Delinear o curso e o impacto de um filme como Os fuzis (1964) não é uma tarefa simples, tendo em mira a força imagética com que seus temas são enfocados. Em poucas palavras, é possível dizer que seu cenário se volta para uma região olvidada e que receberia atenção da literatura brasileira nos anos 1930 e do cinema nacional nos anos 1960. Ainda que o cineasta moçambicano Ruy Guerra, radicado no Brasil, reporte-se a essa região específica – o nordeste do país – e a um problema que lhe é peculiar e crônico – a seca –, o que a película almeja é um retrato profundo e impactante do povo brasileiro, da sua condição e do seu espírito coletivo.
Trata-se, de resto, das finalidades precípuas do movimento Cinema Novo, do qual é um de seus melhores representantes, constituindo a trilogia da terra, ao lado de Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, e de Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha.
Em Os fuzis narra-se a vida de um vilarejo do interior nordestino, onde seus humildes habitantes definham pauperizados ante a escassez de alimentos e a onipotência inclemente do sol. Diante da iminência da fome, a população busca em desespero meios para suprir suas necessidades. Não obstante, na medida em que esta subsistência material torna-se cada vez mais difícil, assiste-se à emergência da religião como fenômeno norteador da relação do ser humano com a indigência aniquiladora.
No desenrolar da película, filma-se com maestria e vai-se percebendo como a fé e a crença orientam a conduta dos habitantes. Para além da associação simplista com a alienação – lembremos de Barravento, filme de estreia de Glauber Rocha –, a religião confere significação à situação vigente e projeta perspectiva de mudanças, mesmo ante toda a desolação por que passam. Desta explicação supra terrena, que é a única fonte de segurança, por inefável que seja, provém as romarias, as peregrinações, as devoções aos santos e à figura mítica do boi – animal totêmico, sagrado, central no filme.
A religiosidade do povoado, que à primeira vista soa ao espectador um fator alienante, consiste em verdade na única forma de sobrevivência coletiva frente à iníqua realidade que se apresenta aos moradores. Todavia, à passividade inicial com que parece viver a comunidade, não se insurgindo contra aquele estado calamitoso, opõe-se o desfecho do filme, quando a população ensandecida sacrifica o boi imaculado, devorando-o até às tripas.
Somado à temática religiosa, observa-se ainda um outro, muito característico do que se pode considerar a incongruência social brasileira. O absurdo da condição humana, protagonizado pelos habitantes da localidade sertaneja, é aguçado com a chegada dos representantes da lei e mantenedores da ordem. As tropas do Exército chegam ao local para resguardar o direito de propriedade e as mercadorias dos armazéns que começam a ser invadidos e saqueados, mas acabam por corroborar com a situação iníqua e inóspita.
É possível, sob uma ótica mais abrangente, dizer que se confinam naquele mesmo espaço geográfico, dois brasis inconciliáveis à razão mediana. Um representado pela população local, famélica, desassistida, desarmada; outro expresso pelos homens fardados, armados, truculentos.
Muitas indagações vêm de imediato ao pensamento quando, perplexos, colocamo-nos diante destas imagens cinematográficas realísticas: quem urde aquele cenário social dramático, aquele ambiente de arrogância, aqueles seres de tamanha truculência? Que intenções a promovem e a legitimam? Quem é capaz de forjar aquelas figuras insensíveis?
O filme não responde, apenas sugestiona por meio de suas imagens viscerais filmadas em P&B. É o arbítrio de um poder invisível, dissolvido por trás de tacanhos soldados; de visível e palpável apenas os fuzis.
Como na épica de Canudos, trata-se do início da loucura ou do fim do mundo? A salvação pela fé ou a insanidade geral? Nada parece fornecer referencial estável às enigmáticas cenas do filme. Ruy Guerra exibe um Brasil bélico, obscuro, encarnado na sinistra voz do narrador, que não é desatino ou exagero, mas a crua realidade que o cerca.
Edição: Guilherme Mazzeo
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