Gerd Bornheim e o conceito de descobrimento
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Gerd Bornheim (1929-2002) argumenta que o conceito de descobrimento vai muito além e aquém de uma definição conceitual, com data histórica e precisa. Ele não se esgota em um acontecimento casual. Ao contrário, ele compreende um feito cujo alcance transcende um antes e um depois. É esta abertura e essa amplidão do conceito que possibilitam uma reflexão sobre o caráter universal dos descobrimentos. Um evento que põe em questão a universalidade do homem, tal como os gregos a haviam concebido. Um gênero e uma espécie válidos para qualquer tempo e espaço. No entanto, trata-se de um universal concreto, aquele em que a cultura ganha um sentido universalizante em consonância com um processo histórico determinado. Por isso, não há a negação de que haja fatos nem delimitações, mas que a ruptura e a violência instaurada pelos descobrimentos afetam as suas fronteiras e as mantêm abertas até a atualidade. Em razão disto, elas devem ser pensadas.
O autor foca sua atenção na natureza do universal, tal como vinha sendo tratada na tradição platônica e escolástica, isto é, segundo a filosofia e a teologia. Para ele, tais tradições são explodidas com o advento das grandes navegações. Segundo ele, este configura uma segunda grande revolução na história do próprio homem, desde o Neolítico, quando o homem se tornou sedentário, passou a cultivar agricultura e dividiu o mundo segundo a esfera dos homens e dos deuses.
Os descobrimentos colocam em questão as premissas de espaço e de tempo até então conhecidas em questão. Com sua ciência incipiente, testam os limites do mundo e radicalizam sua finitude. Fazem observações que embaraçam noções preconcebidas. Os evangelizadores passam a ser aqueles que reduzem a natureza do universal, pela conversão do múltiplo ao uno, até a consciência ocidental se aperceber de que se tratava de um genocídio. Os descobridores maravilham-se com a multiplicidade dos lugares e dos espaços. Há aqui uma alteração na importância dada ao tempo em relação ao espaço, transformadas como ciências modernas em história e geografia. Para isso, o autor cita Marx como exemplo e Kant, como exceção.
A ideia central do autor é a de que toda a ciência do nosso tempo se embasa no nominalismo. O autor considera a inversão decisiva processada pelo nominalismo na história do conhecimento e das ideias. A essência, antes definidora do sentido de todas as coisas e objeto, perde a sua condição de uma ontologia divina. Essa transformação passa a valorizar a realidade dos objetos que os conceitos designam. Assim, a existência conquista a primazia sobre a essência, explicando-se por ela mesma, sem sentido transcendente prévio. Isto atinge todos os campos e recantos do saber: filosofia, ciência, arte, política. É o esvaziamento do império metafísico que vai de Platão a Hegel.
O autor dá continuidade ao seu objetivo de devassar as fronteiras mais extremas dos descobrimentos – do platonismo à aldeia global. Para isso, inclui a transmutação do sentido da viagem nos tempos modernos. Não que não tenha havido grandes viagens antes disto, pelo contrário, mas passa-se então a repensar a finalidade das viagens no Ocidente. O exemplo mais candente da transformação está no trajeto feito pelos peregrinos cristãos às cidades sagradas, Roma, Vaticano, Santiago de Compostela. Vista como missão ou penitência, a viagem perfaz um itinerário que é desde sempre conhecido, bem como seu lugar de destino. Meio e fim são previamente conhecidos. Trata-se daquilo que o autor denomina "mesmidade do mesmo".
Ora, nas viagens dos novos descobridores, nem meio nem fim são claramente definidos, daí nossa longa discussão historiográfica sobre a intencionalidade ou não do descobrimento do Brasil. O fascínio e a curiosidade pelo diferente – pela paisagem, pela riqueza e pelos povos – tornam-se com o tempo no prazer pela "alteridade do outro". É daí que derivam os fundamentos da antropologia científica – o reconhecimento das culturas humanas como reino das diferenças. A motivação primordial das viagens – descobrir mundos novos, distintas latitudes – está na base da moderna antropologia que quer encontrar, à margem do avanço civilizatório, elementos antropológicos desconhecidos. Os esquimós, os trobiandeses, os Nuer, os Bororo.
O autor postula a ideia da transparência como vetor e espelho polimórfico a partir do qual o homem pode perceber a alteridade, a diferença cultural. Para tal, o autor considera a importância da relação entre a racionalidade que se instaura e o mundo da imaginação. Tal razão pode ser percebida na matemática, na música, na astronomia, na pintura, na geometria, enfim, em todas as ciências e artes que se amparam no princípio da proporção e da exatidão. Por outro lado, o autor quer investigar o que a razão tem a dizer à imaginação que se constitui com base na experiência das viagens.
Trata-se daquela imaginação que na Europa compõe as cidades-utópicas, tal como as dos escritores Tomas Morus e Campanella, em sua "Cidade do Sol". O autor em mente também a figura do bom-selvagem projetada por Rousseau no século XVIII. O que este homem, em tudo diferente do civilizado, tem a dizer para este? Afinal, ele é em tudo oposto ao que se quer projetar: autonomia, democracia, civilidade, individualismo, Estado, propriedade privada. É com base na relação entre razão e imaginação que o autor tece suas considerações. Para ele, um e outro não se opõem; não compõem também um contrapeso que levaria a um equilíbrio formal. O imaginário, segundo ele, se engendra de dentro dos quadros da racionalidade. A transparência moderna é a contrapartida da opacidade medieval. Uma forma de olhar o outro como ele é. A transparência se exemplifica no livro, como a codificação dos conhecimentos e do saber. Tornar tudo que há no mundo inteligível nas suas diferenças.
O autor trata ainda da redescoberta do corpo e da cultura corporal no bojo dos descobrimentos. No corpo se situa uma alteridade fundamental do homem, com base na tradicional divisão cristã entre o corpo e a alma. Reconhecer essa parte até então estranha de si próprio é indicativo das transformações intelectuais operadas. Basta pensar nos estudos sobre o corpo feitos no Renascimento, com Da Vinci. A biologia é outro índice da importância atribuída ao corpo humano e a seus mecanismos de funcionamento, como a circulação sanguínea. A presença do corpo nos quadros também marcou a pintura renascentista. Para uma exemplificação mais modulada do reconhecimento da alteridade corporal, Bornheim recorre à concepção do corpo selvagem, integrado à natureza e dotado de plenitude, com uma abertura para o mundo dos prazeres. Recorre também à medicina, que altera a própria função agonizante dos hospitais, como lugares de passagem para enfermos. E recorre ainda ao esporte, como símbolo de esplendor e culto de uma modernidade que valoriza a força, a beleza e a proporção advinda da compleição física.
Edição Enrique Shiguematu
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