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GV CULT - Criatividade e Cultura

Historiografia do Antigo Regime na França

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09/10/2018 06h54

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

"Para o historiador britânico, as origens da Revolução Francesa se encontram em seu próprio país…"

Para Albert Soboul, no opulento volume A civilização e a Revolução Francesa (1970), o termo Ancien Regime foi forjado pelos contemporâneos setecentistas que vivenciaram o processo revolucionário a partir da convocação dos Estados Gerais. A expressão, portanto, não é uma abstração categorizada por historiadores do século XIX, seja um Tocqueville a sustentar a continuidade entre antes e depois de 1789, seja um Hippolyte Taine a insistir ao contrário em seu caráter de ruptura. Junto a Marx, Tocqueville e Taine deram origem no Oitocentos a importantes tradições interpretativas do Antigo Regime, com influência na historiografia do século XX.

O Antigo Regime foi vivido, assim, segundo o historiador marxista francês, pela imensa maioria da população como mais do que uma armadura político-institucional, como um aspecto concreto arraigado na vida social, na mentalidade coletiva e na maneira de viver à época. Em seus limites cronológicos, define ainda Soboul, o Antigo Regime encontra seus primórdios na Idade Média, no curso de um longo e lento período de transição, que se inicia entre a Guerra dos Cem Anos e as Guerras de Religião e se estende até a sua brusca ruptura na França durante o quinquênio 1789-1794.

Ela compreende, portanto, três séculos de monarquia, sua idade clássica indo de 1620-1640 a 1720-1730. A crise do Antigo Regime está circunscrita à segunda metade do século XVIII, aguçando-se no período que vai de 1750-1760 até a década de 80, quando as tensões internas fazem romper o ponto de equilíbrio piramidal em que se sustentava o sistema e põem abaixo um regime despótico.

A caracterização mais geral feita pelo mesmo historiador francês aponta a economia, apesar de uma relativa prosperidade, ainda muito conectada ao passado medieval, portanto presa aos grilhões feudais. No plano social, isto se evidencia mediante a persistência do privilégio aristocrático. No plano político-administrativo, o absolutismo monárquico do direito divino é o elemento preponderante.

A economia europeia tinha manifestado um progresso contínuo desde o fim da Idade Média, sustentada pela exploração dos mundos coloniais e pela política mercantilista dos grandes Estados. Ela se acelera no século XVIII na Inglaterra com a inauguração da máquina a vapor, em um processo que, como sublinha Eric Hobsbawm, apenas depois do exemplo da Revolução Francesa, seria cunhada de Revolução Industrial.

Em uma explicação canônica do marxismo, defendida por Soboul, a dinamização econômica inglesa implicou no abandono das antigas estruturas agrárias, isto é, na adoção de um novo modo de produção, com a redistribuição da divisão da produção e com a evolução para um novo aumento demográfico, que culminaram na transformação da hierarquia de classes e na recriação dos valores sociais. A noção de revolução industrial subentende a noção de longa duração, embora sua eclosão se inscreva no tempo curto: vinte ou trinta anos no curso dos quais a produção avança de maneira decisiva, breve transição que permite à economia se desvincular das tradições agrárias e anunciar a transformação irrevogável das estruturas. Ao comparar o crescimento econômico entre Inglaterra e França, Soboul constata a existência de ritmos de desenvolvimento relativamente próximos, mas com o primeiro reino assistindo a mutações técnicas decisivas.

O inegável crescimento econômico da França não esconde a preponderância da agricultura, a lentidão das comunicações (apesar de certo progresso), o atraso da metalurgia em uma produção industrial ela mesma de segundo plano, a ausência de uma verdadeira rede bancária, enfim, vários traços que evidenciam uma estrutura arcaica e rural da sociedade francesa. À medida que se avança para o Leste da Europa, a estagnação se acentua ainda mais. Fala-se mesmo em uma "segunda servidão". No fim do século XVIII, o Antigo Regime econômico domina a paisagem da Europa continental.

A estrutura social permanece então de essência aristocrática, fundada na hierarquia, no privilégio e nos impostos. Segundo Denis Richet, o absolutismo foi em grande parte "filho da tributação" (Cf. Doyle) A estrutura jurídica das "ordens" ou dos "estados" mascara mal, segundo Soboul, em famosa polêmica conceitual com o historiador Roland Mousnier, a realidade social das classes. Esta realidade apresentava sempre a marca de suas origens, de uma época onde a terra, constituindo a única riqueza, como queriam os fisiocratas franceses – Quesnay, Mirabeau, Turgot – conferia poder àqueles que a possuíam.

Fazendo eco a Soboul, o historiador marxista Perry Anderson considera o absolutismo a manifestação política da última etapa do modo feudal de produção, na qual os nobres procuraram escorar o domínio decadente que mantinham sobre as massas camponesas, entregando parte de seu poder e autoridade a um Estado central fortalecido, que por sua vez garantia a sua posição social. A burguesia não tinha lugar dentro desse ajuste e, em consequência, assim que se sentiu suficientemente forte, derrubou ao mesmo tempo o absolutismo e o feudalismo.

Do lado da historiografia inglesa, é possível dizer que há diversas formas de compreender a crise do Ancien Regime francês. O historiador William Doyle enumera três: 1) A competição internacional consumia além dos limites os recursos do Estado e sobrecarregava o sistema financeiro; 2) Um público leitor instruído, em expansão, encarava tudo com confiança cada vez menor, questionando e discutindo todas as opiniões convencionais sobre qualquer assunto que se possa imaginar; 3) A população crescia a níveis nunca antes atingidos e, enquanto se ampliava a distância entre ricos e pobres, perdiam importância as velhas divisões de status entre os ricos nas camadas superiores da sociedade.

Eric Hobsbawm, em seu famoso livro do final dos anos 1950, A Era das Revoluções, parte da perspectiva clássica, isto é, aquela centrada na reconstituição dos acontecimentos políticos e econômicos, para mostrar como o final do século XVIII foi marcado por agitações políticas que puseram em crise antigos regimes na Europa, sendo a Revolução Francesa seu evento mais dramático.

Para o historiador britânico, as origens da Revolução Francesa se encontram em seu próprio país, uma vez que era uma potência econômica, mas apresentava a mais típica das monarquias absolutas da Europa e, ao mesmo tempo, apresentava forças sociais ascendentes. Estes, vindos do terceiro estado, emergiam economicamente e buscam também espaço na ocupação do aparelho estatal, reivindicando formas justas de concorrência a cargos e postos oficiais.

Em um enfoque marxista, porém não mecanicista, Hobsbawm mostra de que maneira a burguesia tinha clareza do que desejava para a França, mas as forças conservadoras eram um obstáculo para a realização de seus princípios liberais, como tentou de maneira malograda Turgot. O despotismo esclarecido na Rússia, na Prússia e na Áustria havia mostrado como não existia incompatibilidade entre a monarquia absoluta e a racionalização modernizadora da economia, todavia isto não foi conseguido na França, com os nobres e as ordens privilegiadas a manter suas isenções de impostos e a monopolizar as vantagens públicas do poder.

Esse quadro, que se acumula ao longo do século XVIII e se soma à conjuntura de crise na produção alimentícia, leva ao aumento da tensão social. A reação feudal é o estopim que levou à eclosão da Revolução Francesa.

Ao descrever o panorama da época, Hobsbawm frisa o caráter majoritariamente rural da sociedade francesa, com uma ínfima nobreza constituída de 400 mil homens, em uma sociedade com 23 milhões de habitantes. A situação da nobreza vinha se deteriorando à medida que seu status elevado não correspondia mais à sua economia, em declínio. Os aristocratas eram cada vez mais dependentes do Estado e de seus benefícios, tendo de concorrer com os burgueses, que aspiravam aos mesmos postos. Em decadência, os nobres franceses começaram a se valer de seus privilégios de propriedade e de sangue para garantir as funções administrativas, as sinecuras e o poder administrativo nas províncias, o que acirra sua exploração do campesinato e sua competição com a classe média emergente.

Alguns direitos feudais foram reivindicados novamente pela nobreza. O campesinato correspondia a 80% da população francesa e sua situação, ainda que fossem livres e possuíssem terra, não era boa. O atraso técnico, a fome e o aumento da população agravavam a penúria dos camponeses nos últimos 20 anos que antecederam a Revolução. De acordo com Hobsbawm, a estrutura administrativa da monarquia era obsoleta e levava as finanças francesas a uma situação crítica. Esta se intensificou com o apoio da França à independência norte-americana, comprometendo e endividando a economia do país. Os gastos com a guerra levaram o Estado à bancarrota, constituindo os fatores externos da chamada crise do Antigo Regime.

 Para entender as razões pelas quais o Antigo Regime ruiu, alguns autores sustentam que a Revolução Francesa articulou ideais liberais burgueses e sentimentos populares de indignação. Além de seu caráter universal, que serviu de modelo político-ideológico para Índia, América Latina e outros países, deve ressaltar a ausência de programa ou de planejamento de classe. Ao protagonizar uma convulsão social daquelas proporções, em que um acúmulo de revoltas, no campo e na cidade, se transforma em revolução, a Revolução Francesa coloca em pauta os limites e a eficácia da dominação tradicional, ou seja, aquela do poder monárquico absoluto não mais exercendo a mesma capacidade de gerar obediência, afetando a coesão social.

Em obra hoje clássica intitulada O grande medo, o historiador Georges Lefebvre (1990) descreve como a Revolução se gestou tanto nas províncias francesas quanto em Paris. A ideia de um grande medo que assolou a França nas últimas décadas do século XVIII, através de um pânico generalizado manifestou do campo até as cidades, coloca a importância do terreno das mentalidades no processo revolucionário. Esta abordagem põe em questão a figura dos agentes da revolução, o papel ativo e decisivo que tiveram as massas anônimas – isto é, o campesinato e os demais membros desfavorecidos do Terceiro Estado – no curso daquele processo.

Na avaliação de Lefebvre, a Revolução Francesa foi o resultado de uma confluência revolucionária em quatro instâncias de oposição ao Antigo Regime. Uma revolução aristocrática, eu reivindicava a descentralização e a autonomia local e que no século XVIII estava longe de representar valores feudais. Uma revolução burguesa, que tinha como projeto a eliminação dos entraves à produção e propunha a propriedade privada, mas que continha variantes mais radicais, adeptas da república francesa. Uma revolução camponesa, que almejava a conquista da terra e a eliminação de todas as antigas formas de exploração. E uma revolução popular, constituída, na verdade, pela junção de setores radicais da burguesia e dos pobres urbanos que, além da melhoria das condições de vida e trabalho, não conseguiram exprimir claramente o seu projeto.

Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.