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GV CULT - Criatividade e Cultura

José Lins do Rego: antologia de Meus verdes anos (II)

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07/08/2018 06h01

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

"Nada me arreda de ligar a arte à realidade e de arrancar das entranhas

da terra a seiva dos meus romances e de minhas ideias"

(Zé Lins, citado por Austregésilo de Athayde)

No texto da quinzena passada, trouxemos passagens do livro derradeiro de José Lins do Rego: Meus verdes anos (1956), tido pela crítica como a ficção sem os disfarces da memória… Mas, de maneira semelhante ao clássico O pequeno príncipe, pode-se dizer que o universo infantil de Lins do Rego, povoado pela imaginação, é vivido à parte, inacessível, portanto, à lógica dos adultos. Além do protagonista do livro de Saint-Éxupery, José Lins do Rego chegou a ser comparado a um personagem de uma fábula do cinema infanto-juvenil.

Em seu premiado livro Engenho e memória, Luciano Trigo sugere que o autor de Menino de engenho vivenciou uma espécie de síndrome de Peter Pan, permanecendo apegado às lembranças daqueles anos primaveris, como se não quisesse crescer.

De todo modo, qualquer que seja o tipo de comparação, literária ou cinematográfica, fictícia ou confessional, o menino se evadia para os banhos no açude e para as brincadeiras com as crianças das redondezas, os moleques de bagaceira. Em suas lembranças, a fraqueza da meninice é contrastada à vitalidade das demais crianças da região, fruto talvez de um remoto espírito arcádico e por um mundo que às vezes parecia pouco entender.

Seus animais de estimação eram um carneiro e um canário. Trata-se das grandes companhias do menino, além do moleque Ricardo. Pode-se identificar igualmente uma relação direta do escritor com madrastas e padrastos, numa intrincada genealogia, muito bem esmiuçada pelo antropólogo José Sérgio Leite Lopes.

A mesma proximidade do escritor paraibano não acontece com a figura paterna, personagem ausente de Meus verdes anos. Nas vezes em que visitava o Corredor, o pai de Zé Lins não era recebido pelo antigo sogro, que se retirava da sala. João do Rego tinha uma reputação negativa na família. Era ridicularizado pelos da casa, visto como sovina e como alguém que não havia sido um bom marido à filha do coronel.

Nas recordações de José Lins do Rego, as cozinheiras da casa-grande consideravam seu pai um homem sem bondades, porém pacato. Com frequência, a semelhança física com o pai era comentada: "– Este é o menino de Amélia?  Tem tudo do pai, é a cara do João do Rego". Ao contrário do avô, figura que muito o impressionava, Dedé era indiferente com relação à avó, dona Janoca. Dizia simplesmente não gostar dela, afigurando-se em suas lembranças como uma pessoa sombria.   

Retomamos nessa segunda parte, transcrições que consideramos antológicas da obra. Lembre-se sempre que o autor se opõe à tradição literária do romantismo, em favor de um regionalismo de fundo psicológico, com feições narrativas modernas. Comecemos com referências, sempre cruciais, à imagem do avô-coronel:

– "Gritava muito e descompunha como um capitão de navio. Mas tudo sem raiva, não fazendo medo aos moleques e nem temor aos trabalhadores. Era respeitado, e posso dizer mesmo que amado pela sua gente." (p.22).

– "O meu avô passava a contar as suas histórias. Eram fatos dos antigos da família, episódios da guerra de 48, da cólera-morbo, das enchentes do Paraíba. Falava com a voz arrastada e contava tudo com os nomes e as datas. Muito falava do seu avô Num, do seu tio Henrique, do doutor Quinca do Pau Amarelo, das lutas do partido na Monarquia." (p.92).

– "O meu avô não se importava com o francês das filhas do Tio João". (p. 107).

– "Itapuá fora a maior conquista de meu avô. Desde que não pudera adquirir o Jardim, passara-se para a compra do melhor engenho da Várzea." (p. 119).

– "Era assim o meu avô. A sua força morava na sua brandura." (p.123).

– "Nunca o meu avô falava da morte do irmão. Só fazia dizer que cabra atrevido e gente de feira não os queria em suas terras. (…) Não gostava o meu avô de falar das desgraças da cólera.". (p. 130).

 

Em seguida, veja-se como o escritor refere-se em duas citações às trabalhadoras domésticas do engenho, como a negra Galdina, entre outras:

– "As conversas das negras foram as primeiras crônicas que me deram notícias da minha família". (p. 27).

– "Outra africana sobrevivente era a que chamavam tia Maria Gorda. Tremenda negra, perto de quem não podíamos chegar. Esta guardava no coração o ódio de todos os oprimidos. Dormia no último quarto da senzala e gritava contra tudo o dia inteiro. Não falava a mesma língua de vovó. Era de outra nação. Romana, assim do tamanho de um menino de dez anos, só tinha de grande a cabeça comprida como um mamão macho. Vivia a sorrir para o tempo. Fora ama de pegar de meu avô e viera da África ainda se arrastando. Tinha sido escrava dos Leitão, das Figueiras. Um seu filho chamado Isidro se empregara com um inglês da estrada de ferro. Fora com o patrão ao Rio e voltara de lá de língua atravessada contando grandezas. O negro Isidro ainda guardava uma farda que vestia na casa do inglês. Mas possuía o dom da narrativa. Tudo o que contava se parecia com a verdade." (p. 105).   

 

É interessante igualmente observar como o imaginário fabulativo ou as notícias da capital circulavam no espaço comunicativo do engenho. Invocavam-se idas à praia e "histórias do farol" (p. 169), com sereias, faroleiros, e referências históricas, como as fortalezas dos tempos da ocupação dos holandeses. (p. 172)

– Sobre as histórias de Trancoso.  "A voz da velha Totônia enchia o quarto, povoava a minha imaginação de tantos gestos, de tantas festas de rei, de tantas mouras-tortas perversas. Tinha a velha um poder mágico na voz. Era sogra do mestre Águeda, tanoeiro, um negro que mal abria a boca para falar. Tinha para mim um poder de maravilha tudo o que saía da boca murcha da velha Totônia. – Conta outra". (p. 114 e cont.).

– Sobre a leitura no engenho: "Não existiam livros no Corredor. Apenas chegavam maços de jornais do Rio de Janeiro, e sobre a mesa do santuário guardavam a Bíblia com estampas. Não era para ler aquele livro com capa vermelha. Seria, como os santos, um objeto sagrado. E nem o meu avô tinha necessidade de leituras. Apareciam folhinhas Bristol com as fases da lua e das marés. Se havia sobre uma lua-cheia, procurava-se a folhinha de capa amarela. Mas quando aparecia a Tia Marocas do Gameleira, os livros tomavam conta das tias Maria e Naninha. A Tia Marocas se educara em colégio do Recife. E podia falar de muita coisa. O fim do mundo não existia. Tudo aquilo era conversa de jornal. E nos punha a ler nas letras grandes dos títulos do Diário de Pernambuco e da Província." (p. 126)

– "Apareciam os jornais do Recife, a Tia Maria passava a ler os folhetins, a Tia Naninha escutava aquela leitura embevecida. E as notícias do cometa punham um tom de terror às conversas. Os jornais davam detalhe do que seria o fim do mundo. Ficava-se na mesa a escutar a Tia Maria na leitura." (p. 91).

– "Juntou gente para ouvir a engrenagem fabulosa" (p. 155)

 

A família extensa é de suma importância no imaginário zeliniano, como se observa em alusões à tia Naninha, tia Maria e outras: "Apesar de suas violências, era de coração bondoso. Dava esmolas e quando Tia Maria lia o Moço loiro no folhetim do Diário chorava. (p. 243 e 244)

– "A sua maneira de se comunicar com as filhas era estranha. Não conversava com a Tia Maria, a sua preferida. Qualquer coisa que desejava, pedia às travessas. À noite aparecia o momento de conversar com os seus contando histórias dos antigos." (p. 128).

– "Tia Naninha não tinha o mesmo ar carinhoso de Tia Maria. Mudou-se para o quarto dela. Era ciumenta em comparação com a prima. Dormiam na mesma cama. Flagra a sua menstruação". (p. 153).

 

A recordação mais pungente é a da mãe, dir-se-ia crucial. Faz a descrição materna chegando do Engenho Câmara, numa liteira, carregada por negros, ardendo em febre, quase morta:

– "Dona Amélia viera mais branca que madapolão. E vinha queimando em febre".

 

Last but not least, o tema da fuga, sempre presente:

– "Montei no animal e de repente me chegou uma vontade indomável de fugir." (p.154)

Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.