Extrapolação da paisagem: Simmel e a representação pictórica dos Alpes
Por Bernado Buarque de Hollanda
"Refletir também significa 'devolver uma imagem'"
Bernardo Meyer
"O filósofo é aquele que, vivendo o drama humano na sua plenitude, se alça acima dele, tentando formular suas experiências e interrogações em ideais abstratas. O artista as cristaliza em sentimentos, em emoções, em vibrações"
Ruy Coelho

Rising mist over the Savoy Alps – Ferdinand Hodler
Em continuidade aos últimos dois textos publicados, avança-se hoje com a constatação de que o malogro das artes visuais, em face das majestosas montanhas dos Alpes, leva Georg Simmel (1858-1918) a uma inflexão em sua filosofia da paisagem. Segundo o autor alemão, nem mesmo os melhores pintores alpinos, como o italiano Giovanni Segantini (1858-1899) e o suíço Ferdinand Hodler (1853-1918), lograram uma experiência positiva na tentativa de retratar aquela célebre cadeia montanhosa da Europa.
As telas desses pintores lançaram mão de estilizações e artifícios técnicos sem, contudo, captar a magnitude física da natureza paisagística. Por que isto sucedeu, interroga-se Simmel? Em que isto pode transtornar o desenvolvimento anterior acerca do sentimento de paisagem do artista moderno?
A impressão estética causada pelos Alpes requer um novo enfoque sobre o homem, na medida em que a representação pictórica vê-se incapaz de apreender integralmente a forma e a proporção legadas pela natureza. Acima dos bosques e prados, das colinas e penhas, avulta uma geografia irrequieta e acidental, em que meio natural parece engolfar a paisagem pitoresca domesticada.
Com base nessa peculiaridade dos montes alpinos, Simmel discorre em torno do significado universal da natureza, quando se consideram as categorias anímicas do homem. Num dos textos do livro "Sobre la aventura – ensayos filosóficos" (Barcelona: Ediciones Península, 1988), ele diz:
"A alta montanha, com a inacessível e surda fúria de sua massa puramente material e o simultâneo empuxe supraterrâneo, e a calma transfigurada de sua região de neves, inspira-nos em uma única ressonância íntima. Esta ausência de uma significação própria e genuína de sua forma faz com que nela se encontre assento comum o sentimento e o símbolo das grandes potências da existência: daquilo que é menos que qualquer forma e daquilo que é mais que todas as formas" (tradução minha, p. 128).
Se a imponência dos Alpes provoca a sensação de desmesura, as grandes altitudes dos picos rochosos da montanha simbolizam uma outra ordem de estados de alma. Quanto mais alto galga-se seu cume, mais distante espiritualmente ele se encontra da vida. Em seu acme, onde o ar se rarefaz, a paisagem alpina recobre-se apenas de gelo e neve, tornando-se cada vez mais estranha aos instintos vitais.
O homem direciona seu olhar em um horizonte ascendente, espiralado, até que a visão somente pode intuir um sentido supraterreno e metafísico. A própria ideia de relatividade se esvai, para dar lugar ao absoluto, ao intangível, àquilo que transcende a esfera humana.
O homem, como se sabe, é um ser desde sempre limitado e condicionado. Transpõe sensações apenas aos elementos que se descortinam a seus sentidos ópticos. Desta maneira, a oposição de princípio dos efeitos da arte de Wilhelm Worringer (1881-1965) é utilizada por Simmel a fim de contrapor simbolicamente o mar à montanha. A imagem marítima suscita o constante fluir da vida, o ir e vir ininterrupto, a plasticidade da forma, a sucessão entre a tempestade e a calmaria. Já a imagem telúrica suscita a rigidez das formações rochosas, o tempo inerme e imutável, a vida como prisão.
A lição estética de Simmel acerca dos Alpes não garante a capacidade de o artista imprimir uma coesão estrita à paisagem circundante. A natureza passa a figurar como uma força indômita, que faz o ser humano repensar o seu lugar na esfera cósmica. Para encerrar, volvemos ao ensaio simmeliano sobre a aventura:
"Este é o paradoxo da alta montanha: apesar de toda altura vinculada à relatividade do elevado e do profundo, e condicionado pelo que está embaixo, aqui a impressão de altura não só se apresenta incondicionado, não só necessita do de baixo, senão que, pelo contrário, culmina como tal precisamente quando toda a visão de profundidade desapareceu. O sentimento de liberação que nos proporciona nos momentos mais solenes a paisagem dos cumes e dos montes enevoados guarda a mais estreita relação com o sentimento que nos embarga por sua contradição com a vida" (tradução minha, p. 131).
Edição Enrique Shiguematu
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