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GV CULT - Criatividade e Cultura

A galeria Claudia Andujar: mistura e triagem em Inhotim

GVcult

15/07/2016 01h50

Liliana de Paula Guimarães

Sofia Damascena Maia

"As fotos de Andujar são capazes de provocar emoções no espectador, o que indubitavelmente as coloca no patamar de uma obra de arte."

O Instituto Inhotim, esplendoroso jardim botânico e museu de arte contemporânea, inaugurado em 2006, está localizado no que antes consistia um povoado dentro do município de Brumadinho, em Minas Gerais. Ao contrário do que se pensa, Inhotim e Brumadinho não são duas cidades vizinhas. O processo de construção do museu, que hoje é um mundo à parte de Brumadinho, fez surgir várias críticas ao "império" de Bernardo Paz, magnata da mineração e colecionador de arte, mente criadora por trás do instituto.

O que hoje é a "fazenda" de Inhotim, com 132 hectares abertos ao público – mais algumas dezenas que estão com novas construções em andamento –, surgiu em decorrência da compra de várias pequenas propriedades rurais que havia no antigo povoado de Inhotim. No entanto, ainda que muitos não quisessem vender seu pedaço de chão, o poder do dinheiro foi mais forte. Bernardo Paz oferecia aos proprietários muito mais do que as terras realmente valiam para que pudesse construir o que hoje é o Museu de Inhotim.

Essa situação, que em teoria poderia ser benéfica para toda a cidade, gerou de certa forma um entrave para o povo de Brumadinho. É claro que, para dar conta da manutenção do museu, da construção de novos pavilhões e galerias, dentre outras atividades, é necessário contratar mão-de-obra e, nesse sentido, o museu é positivo pois gera renda para a cidade.

No entanto, as dimensões e os interesses do empreendimento atingem a população de Brumadinho de uma forma negativa, já que muitos moradores se sentem excluídos dos benefícios que o Inhotim traz à pobre cidade. Visitar o museu é o único motivo que leva os turistas a Brumadinho. Além de passear pelo majestoso jardim botânico e de apreciar as obras de arte, os visitantes fazem refeições nos restaurantes do Inhotim e levam para casa lembranças de sua loja, tais como livros importados e bijuterias de designers famosos. A maioria dos brumadinhenses encontra-se alheia a esse ciclo de produção e consumo, o que justifica a existência de uma rixa entre a cidade e o museu-parque.

Bernardo Paz declara ter planos de expansão do parque-museu, com a construção de mais galerias, um hotel de luxo e um shopping center. Que perspectivas isso trará para a localidade? Provavelmente, o interesse pela cidade em si diminuirá ainda mais, já que ela corre o risco de ser engolida por Inhotim.

Curiosamente, o processo de desapropriação da terra é o tema central de uma das galerias dentro do Inhotim.

A galeria Claudia Andujar é inteiramente dedicada à fotógrafa suíça que, desde 1957, chama o Brasil de lar. Na década de 1970, trabalhando para a revista Realidade, Andujar foi incumbida de fazer uma reportagem sobre a Amazônia. Recebeu bolsas da Fundação Guggenheim e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) para estudar a tribo dos índios Yanomami. Foi então que ela decidiu abandonar São Paulo para viver entre os estados do Amazonas e de Roraima, a fim de compreender a fundo a cultura e o modo de viver dos Yanomami. Andujar abraçou a causa indígena, tornando-se uma importante ativista da tribo. Cumpriu importante papel na luta pela demarcação de suas terras, o que só foi conquistado em 1992. Durante esse tempo, fotografou a vida e o lar dos indígenas.

O edifício da galeria Claudia Andujar, inaugurado em novembro de 2015, é um dos mais impressionantes do Inhotim, com suntuosos 1600 metros quadrados. Por estar escondido em meio a uma densa vegetação, é preciso chegar perto dele para se ter a dimensão de sua imponência. A textura rústica e o tom terroso dos tijolos que revestem as paredes da galeria fazem mimetismo com os troncos das árvores. Deste modo, tem-se a impressão de que o impacto da construção no ambiente é mínimo. Parece que ela sempre esteve lá, envolta pela mata. Apesar dos ângulos retos e das linhas precisas que demarcam sua arquitetura, o edifício remonta às ocas indígenas.

As várias salas de exposição da galeria, espalhadas em um único piso, misturam ambientes amplos e mais fechados, luz natural e artificial. Em suas imagens, Claudia Andujar faz uso de fortes contrastes de cor e de efeitos visuais que, sobretudo em fotografias da flora amazônica, trazem algo de onírico. As 500 obras expostas mostram o esplendor das florestas brasileiras e de sua população nativa, em diversos momentos da vida e do cotidiano. Todas as fotografias têm como tema os Yanomami e sua relação com o mundo, quer seja o meio-ambiente, a presença da "civilização" moderna ou a própria artista. Não se trata, no entanto, de uma exposição documental, ou de mero fotojornalismo. As fotos de Andujar são capazes de provocar emoções no espectador, o que indubitavelmente as coloca no patamar de uma obra de arte.

A temática de sua produção artística pode ser comparada não só com certos aspectos da própria construção de Inhotim, mas, por exemplo, a estrutura do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha. Isto porque, assim como na obra sobre a guerra de Canudos, as fotografias de Claudia Andujar remetem, de forma análoga, a terra, ao homem e à luta.

A série de fotografias da primeira sala, intitulada Rio Negro, representa o primeiro contato de Claudia Andujar com a Amazônia. Ela não retrata nenhum ser humano, somente a terra. Coloridas, as fotos mostram a natureza exuberante com que conviviam os índios. Num primeiro momento, algumas delas parecem revelar animais, como lagartas ou répteis, mas não passam de trompe l'œil. Trata-se de uma tentativa da artista de buscar espécies da fauna na flora, com plantas que imitam a aparência de bichos. Ademais, chamam atenção as tomadas aéreas, que proporcionam uma perspectiva macroscópica da paisagem amazônica, contrastando com fotos de pequenos detalhes ampliados, como troncos de árvores, superfícies de rios e de folhas.

Nas salas seguintes, os homens – no caso, os índios Yanomami – começam a aparecer nas fotografias. Na terceira sala da galeria, todas as fotografias são em preto e branco, o que confere ainda mais dramaticidade a seus temas. Em retratos intimistas, homens, mulheres, jovens e idosos expressam suas emoções com sorrisos, lágrimas ou olhares profundos. Imagens inéditas mostram rituais típicos, com ritos de passagem, danças, cultos xamânicos e funerais.

Por fim, o tema da luta fica evidente na segunda sala. Esta contém, além de imagens do dia a dia dos Yanomami, publicações de Andujar sobre a tribo, tais como matérias de jornais, revistas e livros. A artista foi uma grande defensora do território indígena, tendo-se empenhado para que a rodovia Transamazônica (BR-210) não comprometesse o habitat dos índios.

Contudo, a construção da rodovia não pôde ser evitada e Claudia Andujar retratou a mudança drástica que a tribo Yanomami sofreu quando passou a ter contato com a modernidade. Tal situação é observada na quinta sala da galeria, nas fotos do álbum Marcados, fruto de uma expedição feita pela fotógrafa com o intuito de prestar assistência médica aos índios. Neste contexto, como muitos não possuíam nome próprio, foram identificados com placas numéricas, para tornar o atendimento médico mais eficiente. O resultado é uma série de retratos de índios catalogados com números.

Desse modo, com a luta sendo vencida pela "civilização", os Yanomami perderam grande parte de seu território. Eles foram desterrados de seu próprio espaço de moradia, e muitos faleceram em razão de contágios e de doenças que sequer existiam na tribo. O impacto da modernidade também fez com que os índios fossem obrigados a adotar certos comportamentos dos "colonizadores" industriais.

Com o passar do tempo, sua cultura foi se esvaindo e sua identidade, perdida. Em várias fotografias do álbum Marcados os índios estão vestidos como os "caras-pálidas" da cidade. Eles usam bonés com propagandas de empresas, camisetas de times de futebol e personagens de desenho animado – o oposto do que o espectador encontra nas primeiras salas da galeria, que mostram os Yanomami tal como Claudia Andujar os encontrou pela primeira vez.

Diz o professor e linguista José Luiz Fiorin que a arte produzida por uma nação é um dos elementos formadores de sua identidade. A identidade nacional é construída por um processo que envolve memórias e narrativas inventadas, que deem significado e individualidade a um povo. A identidade é, portanto, uma autodescrição. No caso do Brasil, ao longo da história foram disseminados símbolos e narrativas que nos caracterizam.

Um dos elementos mais propagados da identidade nacional é a mistura étnica, o caldo cultural que torna o povo brasileiro tão único e diversificado. Essa ideia, glorificada na literatura em romances como O Guarani e O Mulato, denota a miscigenação como uma virtude. José de Alencar criou o mito da formação do Brasil a partir do casamento entre a portuguesa, representando o colonizador, e o indígena, a representar o colonizado, resultando num relacionamento harmônico.

Mas, como a história ensina, o enredo não é bem assim. Este mito romântico oculta conflitos e violências que, querendo ou não, fazem parte da história do Brasil, país repleto de paradoxos. A colonização portuguesa escravizou e dizimou a população indígena. A questão da demarcação de suas terras e a garantia de seus direitos é problemática até hoje.

Fiorin utiliza os princípios de exclusão e de participação para definir as culturas de triagem e de mistura, respectivamente. A cultura de triagem caracteriza-se pela seleção de elementos que a compõem, concentrando os valores desejáveis e excluindo os indesejáveis; enquanto a cultura de mistura é mais inclusiva, e busca a expansão e a participação. O linguista sustenta que narrativas românticas como a d'O Guarani, bem como a obra de Gilberto Freyre, propagam a cultura brasileira como sendo de mistura – exaltam-se a mestiçagem, o sincretismo e a simbiose entre colonizador e colonizado. Todavia, é evidente que princípios de exclusão moldam a identidade brasileira.

Nas palavras de Fiorin, a cultura brasileira euforizou de tal modo a mistura que esta passou a considerar inexistentes as camadas reais da semiose onde opera o princípio da exclusão: por exemplo, nas relações raciais, de gênero, de orientação sexual, etc. A identidade autodescrita do brasileiro é sempre a que é criada pelo princípio da participação, da mistura. Daí se descreve o brasileiro como alguém aberto, acolhedor, cordial, agradável. Ocultam-se o preconceito, a violência que perpassa as relações cotidianas etc. Enfim, esconde-se o que opera sob o princípio da triagem.

Nesse sentido, a teoria de Fiorin e a obra de Claudia Andujar estão intimamente relacionadas. As fotos de sua galeria expõem facetas contrastantes da relação entre os indígenas e o mundo moderno.

Por um lado, o índio é o motivo da fotografia artística, retratado em toda sua beleza e exoticismo, vivendo em comunhão com a floresta tropical do Brasil. Ele permite que a mulher branca – uma estrangeira, "invasora" – entre em seu lar e pose para a câmera. A estrangeira é acolhida no dia-a-dia do índio, fazendo parte de seus rituais tradicionais e apoiando suas causas. Vemos aí os mecanismos de participação operando. Fala-se, portanto, de uma arte inclusiva, que celebra o indígena como componente fundamental do povo e da cultura brasileira.

Por outro lado, a série Marcados escancara a triagem e a exclusão em nossa cultura, trazendo à tona o que a autodescrição da identidade do Brasil prefere esconder. O desenvolvimentismo industrial invadiu o território Yanomami para o estabelecimento da rodovia Transamazônica e provocou a paulatina remoção dos indígenas de sua morada – tal como fizeram os colonizadores, há mais de 500 anos atrás.

As imagens de Claudia Andujar são especiais porque, vistas em conjunto, mostram o paradoxo da identidade do Brasil. Além de fotografar a inclusão, a mistura e a paz entre a tribo indígena e a civilização eurocêntrica que vem chegando, ela também fotografa o conflito e a violência que operam sob o mecanismo da triagem. Isto posto, a cultura brasileira se mostra excludente e discriminatória em relação aos índios. A sua glorificação não passa de um mito propagado ao longo de nossa história para construir a identidade nacional.

Sem querer, a galeria Claudia Andujar revela mais um paradoxo: o da construção do próprio Museu Inhotim. De fato, os habitantes das antigas propriedades onde hoje está o parque-museu receberam pequenas fortunas para sair dali. Sim, o Inhotim gera empregos para os habitantes da localidade. E sim, pode ser que as futuras edificações planejadas por Bernardo Paz proporcionem o desenvolvimento da cidade, com a geração de ainda mais oportunidades de trabalho. Por essa lógica, o museu e a cidade caminham harmonicamente na mesma direção, numa situação que poderíamos chamar de cultura inclusiva, de mistura.

Em contrapartida, esse magnífico jardim, repleto de obras de arte, só foi possibilitado graças à "colonização" de um povoado pobre. Todo um bairro da cidade de Brumadinho foi extinto, e seus moradores, expulsos – ainda que pagos para fazê-lo – para dar lugar a um oásis da elite intelectual e artística. Nota-se, então, que a trajetória do Inhotim oculta uma lógica de triagem e exclusão.

Assim, de forma análoga aos índios Yanomami que foram desterrados para abrir caminho para a industrialização, os habitantes daquele antigo povoado de Brumadinho perderam a propriedade de suas terras, cedendo à construção do instituto Inhotim. Como a maioria dos indígenas que não se beneficiaram do desenvolvimento industrial trazido pela rodovia Transamazônica, a maioria dos habitantes de Brumadinho é alheia à efervescência cultural trazida pelo museu.

 

Referências

Claudia Andujar. Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa18847/claudia-andujar. Acesso em 16/06/2016

 

Claudia Andujar – Yanomami: a etnopoética da imagem. O Índio na Fotografia Brasileira. 2013. Disponível em http://povosindigenas.com/claudia-andujar/. Acesso em 17/06/2016.

 

Galeria Claudia Andujar. Revista Vitruvius, janeiro de 2016. Disponível em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/16.181/5893. Acesso em 17/06/2016.

ROMERO, S. A Keeper of a Vast Garden of Art in the Hills of Brazil. The New York Times, 9 de março de 2012. Disponível em

http://www.nytimes.com/2012/03/10/world/americas/bernardo-pazs-inhotim-is-vast-garden- of-art.html?_r=0. Acesso em 17/06/2016.

 

Edição: Enrique Shiguematu

Liliana de Paula Guimarães e Sofia Damascena Maia são alunas de primeiro período de graduação do curso de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas (São Paulo, Turma 8, FGV-SP). Este trabalho foi realizado na disciplina "Sociedade & Representação: o Brasil através das Artes", ministrada pelo professor Bernardo Buarque em 2016.1, após visita ao Instituto Inhotim – Centro de Arte Contemporânea, na cidade de Brumadinho, Minas Gerais

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.