História e historiadores da Época Moderna (I)
Por Bernardo Buarque de Hollanda
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Conforme situa o historiador francês Jacques Revel, a História Social é, em sua versão clássica, majoritariamente concebida como uma história de entidades sociais: a comunidade de residência (vila, paróquia, bairro), o grupo profissional, a ordem, a classe, etc. Podem-se discutir os contornos destas entidades e, mais ainda, a coerência e sua significação sócio-histórica, embora elas não sejam colocadas fundamentalmente em causa.
Nos anos 1950, Ernest Labrousse (1895-1988), formado nos quadros da história serial, abre um debate em torno de um projeto comparado entre burguesias europeias, ao passo que na década seguinte o mesmo trava discussão com Roland Mousnier (1907-1993) a respeito do conceito de "ordens" em contraposição ao de "classes" sociais.
Essa discussão procura responder à questão da estratificação da sociedade no começo da Época Moderna. Mousnier, especializado nas agitações sociais do século XVI e da primeira metade do século XVII e em sua relação com o Estado "absolutista", procura mostrar que a sociedade de ordens é distinta conceitualmente da sociedade de castas e da sociedade de classes. Para isto, realça a importância da rede hierárquica e da composição dos laços de fidelidade corporativa, no interior de um modelo social que mistura elementos bipartites – a dicotomia elites e massas – e elementos tripartites – a distinção jurídica entre as três ordens do Antigo Regime: clero, nobreza e Terceiro Estado.
A preponderância da história estrutural quantitativa se mantém durante quarenta anos, com pesquisas feitas em cidades, cujas configurações de grupos variam de local a local, mas com os mesmos personagens sociais e com uma mesma "inércia classificatória", para falar de novo com Revel.
Nesse sentido, a obra clássica de Edward P. Thompson (1924-1993), saída da tradição da historiografia marxista inglesa da pós-Segunda Guerra, interroga a definição pré-construída de um grupo social – a classe trabalhadora inglesa anterior e contemporânea à Revolução Industrial – para insistir sobre os mecanismos internos de sua formação identitária. Ainda que inicialmente de forma isolada, esta obra problematiza a natureza dos critérios de classificação sobre os quais se fundamentam as taxonomias dos historiadores, assim como convoca a historiografia a pensar o fenômeno das inter-relações na produção de sentido da sociedade.
A chegada da antropologia histórica e da micro história italiana nos anos 1970 tiveram uma importância decisiva na reformulação e na valorização dessa problemática. Em lugar das massas anônimas, apresentadas sob a forma de números, tabelas e estatísticas – para François Furet (1927-1997) em 1963, a noção de classes subalternas evocava antes de tudo uma ideia de quantidade e de anonimato –, a historiografia introduz os estudos de caso individuais e passa a valorizar a experiência singular dos agentes históricos, mesmo que estes sejam baseados no oximoro "excepcional normal".
A escola historiográfica italiana, com mais nuance e perspectiva, volta-se para a construção das identidades sociais plurais e plásticas que se operavam através de uma rede fechada de relações de concorrência, de aliança e de solidariedade, com uma releitura das hierarquias sociais tal como anteriormente postuladas. Mais do que registrar essa operação, e não deixando de se valer da prosopografia, por exemplo, a micro história transformava em princípio epistemológico a utilização do comportamento individual ou grupal como base para a reconstrução das modalidades de agregação, ou desagregação social, dentro de uma era também chamada pré-capitalista.
Dentre os formuladores da micro história, Giovanni Levi é, sem dúvida, aquele que foi mais longe neste sentido, reintroduzindo noções como aquelas de fracasso, incerteza e racionalidade limitada no seu estudo das estratégias familiares camponesas, desenvolvidas em torno do mercado da terra no século XVII. Levi procura inverter o método habitual do historiador, que consiste em partir de um contexto global para situar e interpretar seu texto. Seu método procura, ao contrário, constituir a pluralidade dos contextos que são necessários à compreensão dos "textos" observados.
Lado a lado com Levi, Carlo Ginzburg em O queijo e os vermes relativiza o poder de transmissão do sistema de crenças institucional da Igreja católica, em pleno período de Contra-Reforma. Para isto, reconstitui a história de um processo movido pela Inquisição contra um moleiro de uma distante e remota região provincial do norte da Itália, em fins do século XVI, alvo de uma série de acusações de heresia e de bruxaria. A pesquisa de Ginzburg põe em relevo a velha cultura camponesa de tradição oral, aquela que, independente da cultura letrada das classes dominantes, foi desenvolvida pelos camponeses depois de séculos imemoriais. Assim, o modelo da micro história valoriza as circunstâncias históricas, sempre dinâmicas e singulares, em detrimento das estruturas apriorísticas estanques.
Fruto dessa orientação historiográfica, embora com formação acadêmica na França, o trabalho de Simoni Cerutti (1990) sobre os ofícios e as corporações em Turim, nos séculos XVII e XVIII, pode servir de mais um exemplo. Sabe-se que as corporações – ou guildas – dominam a vida profissional do artesão, do operário ou do pequeno comerciante. Historicamente, elas são originárias das antigas "irmandades" medievais, exercendo em princípio um controle absoluto sobre a produção dos bens manufaturados e a circulação das mercadorias.
Ora, Cerutti escolhe um tema fecundo, pois nenhuma historiografia é mais espontaneamente organicista que as corporações de ofício. Elas são constituídas de comunidades funcionais, que se supõem altamente integradas, com uma ética de grupo que se afigura quase natural na sociedade urbana do Antigo Regime. A metodologia da historiadora italiana consiste em desconfiar das certezas e mostrar, a partir do jogo de estratégias individuais e familiares e de suas interações, que as identidades profissionais e suas traduções institucionais envolvem conflitos, negociações e transações provisórias no interior de uma mesma corporação.
O tema merecerá mais um capítulo, na próxima quinzena.
Edição Enrique Shiguematu
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