As « possessões maravilhosas » de Stephan Greenblatt (III)
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Cerraremos hoje nossas considerações sobre a obra do historiador estadunidense, com uma súmula de suas ideias.
Segundo Greenblatt, o maravilhamento é o traço principal dos primeiros navegantes em seu primeiro contato com as novas terras descobertas, remetendo o termo à filosofia e à estética. A filosofia nasceu sob o efeito do maravilhoso, enquanto a arte visa desde os tempos primevos a produzir esse efeito. Tanto uma quanto a outra estavam presentes à época dos descobrimentos, mas o autor também defende que a experiência das descobertas influenciou de igual maneira na conceituação do termo.
O autor cita Descartes como um filósofo moderno que procura ultrapassar o conceito de maravilhamento, experiência que se origina do coração. A seu ver, seu objeto não é passional – bem ou mal – mas cerebral, uma vez que visa o conhecimento.
O maravilhamento pode ser útil na medida em que chama a atenção para o novo, para aquilo que se distingue do usual, mas que em excesso é prejudicial, uma vez que precede as categorias morais e não se sabe como empregá-lo. Para Spinoza, o maravilhamento é um modo de concepção, uma imaginação – não uma paixão – um conceito ainda não articulado, que produz paralisia, suspensão momentânea do entendimento.
O maravilhamento é ademais a resposta humana ao que não se pode conhecer e ao que não se pode ao certo acreditar. Trata-se do primeiro encontro. Se a filosofia é o efeito do maravilhamento, Greenblatt passa a examinar sua experiência na poesia, que visa à produção do "maravilhoso". Para isto, cita o poeta John Milton (1608-1674). Neste, a maravilha também é ambígua na descrição maravilhosa da transformação dos anjos rebeldes em seres fantásticos, como os pigmeus no pandemônio.
O maravilhamento é uma alteração do estado de espírito ante o encontro com o inteiramente diferente, com o radicalmente novo. A palpitação do coração entre o medo e a alegria faz o autor voltar ao calvinista Jean de Léry. Este se indaga em que medida pode-se acreditar em histórias de casos tão distantes e que não constam dos relatos dos Antigos. O autor critica o ceticismo de alguns europeus e mostra como há relatos que comprovam determinadas descrições até então tidas como fabulosas.
A inteira novidade do Novo Mundo repousa em sua completa ausência e estranheza nos relatos dos Antigos. O maravilhamento articula estados interiores com objetos exteriores, de modo que todo relato sobre as maravilhas deve conter essa experiência de assombro. À suspensão inicial da ordem, sucede o toque, a aproximação, a catalogação, a possessão.
Embora fosse um traço central no sistema de representação – intelectual e emocional, verbal e visual, filosófico e estético – o maravilhamento não dizia respeito a uma prática mimética única, abrangendo diversos discursos e interseções em domínios diferentes. Os relatos dos europeus sobre o Novo Mundo lidam com a imaginação em ação. Ao contrário da literatura, as operações imaginativas de textos e atos não-ficcionais lidam com os poderes do real.
O Autor defende que não há uma ideologia renascentista unificada. Mas a diferenciação das respostas ao Novo Mundo revela conceitos e técnicas partilhados. Para compreender esse novo mundo para além do maravilhamento, os europeus lançaram mão de uma maquinaria mimética, o elemento mediador da possessão e do contato. O discurso da descoberta registra o poder e os limites da prática representacional europeia.
O fato de o maravilhamento preceder o bem e o mal, assim como o conhecimento, fez com que sua indeterminação provocasse inúmeras apropriações diferenciadas. Com Mandeville (1670-1733), a linguagem do maravilhamento integra uma renúncia à possessão. Com Colombo, a linguagem do maravilhamento cumpre uma função de redenção esteticizante. A experiência do maravilhoso mostra os limites da apreensão do mundo. Como qualquer técnica, por mais poderosa que seja, é sempre provisória e incompleta.
Tal incompletude é expressa na questão comunicativa, na incapacidade de compreender e de ser compreendido. A diferença de linguagem é um dos elementos centrais do estranhamento. Assim, o domínio linguístico do outro parece um primeiro expediente de apropriação do outro. O comércio de gestos, palavras e objetos é seguido pela possessão colonial da língua.
Vai-se assim do maravilhamento medieval – a despossessão – até o maravilhamento renascentista, com a colonização do maravilhoso. Mas com Montaigne, por exemplo, continua-se a postular um maravilhamento despossessivo, crítico e humanizador, que não serve apenas à empresa colonial. Seu significado está, pois, aberto, à decência e à dominação.
O maravilhamento está presente no dia a dia, desde que essa proximidade se converta em estranhamento da rotina. Volta o autor assim à sensação dos balineses, diante do maravilhamento das diversas imagens tecnológicas que tinham à sua frente. Ao invés de serem tratadas como sinais de dominação pura e simples, seu espanto soa como um auspicioso deslumbramento.
Edição Filipe Dal'Bó
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