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GV CULT - Criatividade e Cultura

Ttéia 1C: Persistência da efemeridade

Ana Vidal

30/11/2015 07h00

Por     Isis Belucci Gomes e Sara Rodrigues de Lima Baptista

Ttéia 1C, 2002. Disponível em:

Ttéia 1C, 2002. Disponível em: <www.inhotim.org.br/inhotim/arte-contemporanea/obras/tteia-1c/>

Tudo o que está dentro está fora. Tudo que está fora se fecha no dentro. O excerto do crítico de arte Márcio Doctors (2001) expressa, concomitantemente, inquietude e resposta aos feitos da artista carioca Lygia Pape. Nascida em Nova Friburgo,1927, dedicou-se academicamente à filosofia e suas estéticas, ao mesmo tempo em que buscava na fruição da arte e na ruptura do espaço uma réplica ao seu tempo e a sua contemporaneidade ofegante. Precursora do Grupo Frente, grupo de experimentação carioca, e signatária do Manifesto Neoconcreto, é parte fundamental da construção de um movimento brasileiro que quebra com a figuração e ufanismo modernos e, num processo antropofágico, revisita o concretismo europeu, em busca da arte como meio, forma e luz; a imagem sendo geometricamente a fusão de cheios e vazios, em experiências que transcendem o pictórico.

Lygia Pape transita por um contexto de enormes transformações urbanas.  O inchaço da periferia, o crescimento da população e a formação de novos fluxos e prioridades, responsáveis também por mudanças sociais desvairadas. Ttéias é o nome da série de experimentações que Pape desenvolveu durante mais de vinte anos, como forma de exploração do urbano, das tensões sociais e da essência estética. A artista dizia perceber, em suas andanças pela cidade, que seus caminhos teciam uma enorme teia de lugares visitados e revisitados, percebendo os fluxos e dinâmicas estabelecidos e o impacto causado pela cidade.

A primeira obra da série consiste em barbantes entre árvores no jardim de uma escola; em um segundo momento, aloca suas teias em um ambiente urbano. O nome faz alusão não só a conexões sociais, mas a teias em si, como as de aranha, frágeis. Contra a ideia muitas vezes repulsiva que a lembrança aracnídea pode causar, vem o primeiro T formando a palavra tetéia, que no vocábulo popular designa algo ou alguém bonito, charmoso, com pompa.   

Situada no Instituto Inhotim, em Brumadinho-MG, que já é um espaço singular naturalmente, a galeria Lygia Pape abriga uma das obras da artista mais significativas como estudo sinestésico, última da série: Ttéia 1C. O observador se eleva por uma inclinação, cercado de plantas silvestres que começam o processo de descoberta da arte; ao fim do caminho proposto, depara-se com um bloco de concreto aparente, hermeticamente vedado. O choque de mudança espacial só não é maior pela forma do edifício: com vazios triangulares na mediana, afasta o espectador da dureza da construção e o convida a buscar a direção da aparente torção de um bloco comum. A linha interna da lacuna, ao nível dos olhos, leva a uma pequena porta. Entrar por ela é penetrar a imponência concreta do volume externo, encontrando o negro, o escuro do espaço interno, que funciona como preenchimento e vazio.

Desorientado, o observador caminha seguindo mínimos focos de luz a poucos centímetros do chão, enchendo quem caminha de expectativa, enquanto o tira do exterior, dissolvendo a cada passo o mundo concreto e o concentra na própria percepção – e introspecção. O corredor escuro não parece ter fim ou meio, mas ao longo de seu percurso, descobre-se um campo de feixes de luz. Um enorme salão, cirurgicamente iluminado, abriga a obra que existe de uma forma para cada pessoa que a contemple, e que é formada do mínimo para que exista volume: a linha e a luz. É a quebra do concreto em ínfimas partes, que causa a sensação de desconstrução e a compreensão de que toda estrutura rígida é formada de pequenos elementos sensíveis.

Mesmo dentro, e com maior luminosidade, o caminhar ainda é esparso e difícil. Não obstante, ao chegar perto do tablado que abriga os milhares fios de nylon dourados em tensão, dispostos em diagonais, a fluidez toma o espectador, e seu percurso passa a ser feito como tentativa de seguir o fluxo de luzes que formam massas completas ao longe, mas desaparecem imediatamente à frente dos olhos. O material ressignifica algo tão próximo de nós – o nylon está presente nos tecidos das roupas – e o eleva a elemento intocado. A mudança de perspectiva dá o tom da obra, que está de uma forma a cada passo, num jogo de linguagens e imaginação. E a existência breve de cada feixe deixa a questão: aquilo está dado ou o observador que constrói a obra?

Ttéia é uma obra que brinca com a confiabilidade do intimismo e o aspecto irônico e duvidoso do ato de aproximar-se demasiado. Sua reminiscência ao luxo, feita pelo jogo de luzes douradas em meio ao escuro recupera à primeira vista a ideia de obra de arte enquanto objeto luxuoso, que está ali exclusivamente para contemplação. Não é por acaso, portanto, que ela, enquanto encerramento da série homônima da artista, está no locus de excelência da arte, o museu e as exposições. É difícil acreditar que, diferentemente de outras produções de Pape, Ttéia possa ser comercializada de maneira flexível no mercado de arte, de modo a ser apossada por alguém que comprometeria esse aspecto expositivo da obra em função do privatismo.

Nesse sentido, a necessidade de limitar a interação do público com a instalação, em função de sua preservação, é uma deturpação que compromete verdadeiramente o significado subversivo da obra. A aproximação dos fios permite perceber que são feitos de um material que não parece ostensivo – o que é confirmado depois pela informação de que são feitos de algo ordinário. Essa aproximação, tal qual a obra está em Inhotim, se dá pelos cantos, mas carregaria um outro significado se ao adentrar a obra – cujo centro é naturalmente magnético, uma vez que, como Através de Cildo Meirelles estabelece, aqueles fios não deixam de ser barreiras – implicasse no risco de rompimento de algum deles.

É aqui que reside parte da reflexão crítica que a obra propõe. Se é certo que Pape pertence ao grupo que questionou a abordagem direta e declarada da arte modernista para com a historicidade, é também seguro afirmar que não se pode negar uma inevitabilidade entre historicidade e arte. Apenas a abordagem é diferente. Como recobra Luiz Camillo Osório, as poéticas emergentes [do fim do século XX] vão assumir (…) um "presente amplo de contemporaneidades", renegociando o passado e sinalizando para o futuro a partir de uma multiplicidade de "agoras".

A evolução das teias de Lygia Pape, que marcam os anos 80 e cuja consumação se dá em Tteia, além da ideia de conexão entre espaços e subjetividades, traz a bagagem do tempo em que aquela série se inseriu. Esse presente enquanto único tempo possível é reafirmado pela ideia de efemeridade e fugacidade que a fragilidade daqueles fios remetem, o que não deixa de sugerir que algo está por um fio. Se há que se manter a atenção, há que se manter também a tensão, ou vice-versa, porque a sociabilidade daquele período convive diretamente com a ruptura, a fragilidade, a dor. Novamente recorrendo a Camillo Osório, e, indiretamente, a Rodrigo Naves, a arte contemporânea extraiu:

"(…) da fragilidade formal brasileira – ausência de instituições sólidas, desrespeito às normas, inércia patrimonialista, recusa da impessoalidade na vida pública – canais para trocas suprassensoriais, onde se cruzariam experiências e temporalidades na busca de novas formas de subjetivação" (OSÓRIO, p.63, 2011).

Existe ainda o aspecto de ilusionismo estético-social da obra, recobrando a ideia de que "de perto não é bem assim". Os fios verticais parecem se transversionar, sugerindo a ideia de conexão social – bem como a artista descreveu o Rio, sua cidade-teia – mas, onde as individualidades se sobressaem no espaço, nada realmente se encontra e se cruza. Além disso, pode-se ver que no solo as linhas são presas por pregos, mas não se sabe se no teto também o são, somente presume-se, com base no que é acessível ao olhar.

Recordamos o papel que a sombra, como complementar à luz, tem na obra.  Até as sombras no tablado são difusas, dependendo do ponto de vista, revelando mais uma vez as partes do todo, em uma construção em que os vazios são tão ou mais importantes que os cheios. Mesmo que, fantasiosamente, alguns fios pareçam desaparecer, suas sombras fazem lembrar que eles existem, num conflito de imaginação e perda da figuração com a realidade. Em uma disputa de paradoxos entre a dureza e o sensível, a persistência do efêmero é o trunfo da obra de Pape. O contato desconstrói o observador e o reconstrói para algo concretamente novo.  

Edição        Ana Vidal 

isissara

 

Referências (pelas próprias autoras)

  • BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. Funarte Instituto Nacional de Artes Plasticas, 1985.
  • Inhotim inaugura galeria dedicada à emblemática instalação de Lygia Pape. Veja Belo Horizonte. Disponível em: < http://vejabh.abril.com.br/materia/exposicoes/inhotim-inaugura-galeria-dedicada-emblematica-instalacao-lygia-pape/ >. Acessado em: 16 de novembro de 2015.
  • Lygia Pape e a Cidade Teia – emaranhados, enredamentos, projetos: vida e morte, dores e amores. Obvious Mag. Disponível em: < http://obviousmag.org/narrativas_visuais/2015/06/lygia-pape-e-a-cidade-teia.html >. Acessado em: 16 de novembro de 2015.
  • Lygia Pape – Ttéia 1C (2002). Inhotim. Disponível em: < http://www.inhotim.org.br/inhotim/arte-contemporanea/obras/tteia-1c/ >. Acessado em 16 de novembro de 2015.
  • MACHADO, Vanessa Rosa. Lygia Pape: espaços de ruptura. 2010. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
  • NAVES, Rodrigo. Palestra proferida no dia 20 de outubro, no Salão Nobre da EAESP-FGV. São Paulo, 2015.
  • OSÓRIO, Luis Camillo. Arte Contemporânea Brasileira: Multiplicidade Poética e Inserção Internacional. In: Agenda Brasileira. BOTELHO, André e SCHWARCS, Lilia. Companhia das Letras. São Paulo, 2011.
  • Visitas monitoradas a Inhotim em 6 e 7 de novembro de 2015. Brumadinho, 2015.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.