O Império Português na Ásia e seus concorrentes nos séculos XVI e XVII
Por Bernardo Buarque de Hollanda

Os portugueses foram os primeiros europeus a chegar às ilhas da Indonésia. Os empreendimentos dedicados à atuação no comércio de especiarias os levaram a construir entrepostos e fortificações, estabelecendo rotas de grande intensidade comercial no início do século XVI. O declínio português na região pode ser, em parte, explicado pela derrota para os holandeses em 1575, na ilha vulcânica de Ternate. Fotografia: ilha de Ternate (1910), no arquipélago das Molucas, na Indonésia. Fotógrafo desconhecido. Crédito: tropenmuseum.nl
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.O historiador indiano Sanjay Subrahmanyam, nascido em 1961, é pouco conhecido do público brasileiro não universitário. Ao menos, desconheço a existência de referências suas – como L'empire portugais d'Asie, 1500-1700 : une histoire économique et politique (Paris : Maisonneuve & Larose, 1999) – traduzidas por editoras no Brasil. Não obstante, sua obra é capital no estudo do século ibérico, o XVI, especialmente a implantação de Castela nas Filipinas.
Estamos longe das aventuras de Vasco da Gama em Calicute, nos últimos anos do século XV. Lá onde o comércio euroasiático da pimenta e das especiarias antes dominava. São, sobretudo, os têxteis que, em torno de 1700, parecem deixar siderados os europeus. O café e o chá se juntarão logo depois à lista. De uma certa maneira, foi a paixão pelas especiarias que conduziu os europeus do século XVI e XVII a desenvolver uma rede internacional tão elaborada na Ásia.
Para comprar as especiarias, era necessário o tecido indiano e, para adquiri-lo, fazia-se mister mercadorias que tivessem valor no mercado da Índia. No século XVII, a empresa comercial mais florescente na Ásia, a Companhia holandesa das Índias Orientais, compreendia bem isto. Por esta razão, os holandeses estabeleceram uma rede tão elaborada na Ásia. Alimentavam-se uns dos outros e, no fim das contas, permitiam o retorno das cargas à Europa.
Do ponto de vista do estudante de história da Europa, o século XVII é marcado pelo triunfo das companhias comerciais sob autorização real, especializada na troca de mercadorias com a Índia. Neste contexto, é evidentemente muito tentador comparar a luta entre os portugueses e seus rivais do Norte àquela de uma empresa medieval recolhendo seu tributo com uma empresa comercial buscando o lucro máximo.
A noção mesma de companhia sugere um paralelo imediato com o capitalismo moderno e a estrutura das Companhias holandesas e inglesas – com seus diretores, seus sistemas de venda das mercadorias asiáticas, sua utilização de sistemas de pagamento financeiros sofisticados e multilaterais – reforça esta ideia. Além disto, não há dúvida de que, entre a primeira e a segunda metade do século XVII, os portugueses foram ultrapassados sobre a rota do Cabo por ingleses e holandeses. Como explicar este fato senão pelo triunfo de uma empresa capitalista sobre uma empresa senhorial?
As companhias tomavam de empréstimo, com frequência, o exemplo dos portugueses na Índia. O artesão dos primeiros sucessos da Companhia dos holandeses na Ásia, Jan Pieterszoon Coen, estava perfeitamente a par do sistema português de "concessões-viagens". Em 1614, em um correio endereçado aos diretores da sua companhia, ele descrevia como, com um único benefício de seu comércio na Índia, a Companhia podia financiar a viagem de retorno à Europa de suas cargas.
Utilizando o esquema de J. P. Coen, os holandeses estabeleceram, metodicamente na Ásia, uma rede de rotas comerciais dos quais os centros eram as ilhas das Especiarias, Nagasaki, o norte da costa de Java e da Índia. Como os portugueses antes deles, os holandeses não lograram nunca dominar o comércio intenso entre a Índia, o golfo Pérsico e o mar Vermelho. Eles deviam se contentar em fornecer aos mercadores asiáticos o serviço de frete sobre essas rotas. Esta foi efetivamente a relação triangular entre a Índia, as ilhas das Especiarias e posteriormente o Japão, o que explica o grande sucesso da Companhia holandesa no século XVII.
Enquanto isso, parece bem claro que o sucesso não era devido a um modo de organização mais racional ou a um melhor domínio do mercado. Na ilha das Especiarias, dependia-se mais do uso da força bruta, pois os holandeses impunham-se de maneira coercitiva, e por todos os meios possíveis, sobre seus concorrentes, na procura de canela, noz moscada e especiarias.
No Japão, o acesso privilegiado da Companhia ao ouro, à prata e ao couro, sob o regime do Tokugawa, foi uma vez mais o resultado do privilégio comercial específico que o Estado japonês lhe concedeu e não a consequência de sua superioridade na organização econômica. Não será exagero dizer que os metais preciosos e o couro nipônico permitiram explicar, com as especiarias indianas, direta ou indiretamente, o montante de benefícios que os holandeses tiveram do comércio asiático do século XVII.
A força e a diplomacia, mais do que a lei da oferta e da procura, tiveram um papel crucial no sucesso holandês. Isto não deve surpreender porque a Companhia não era somente uma "empresa", mas um ente comercial sob chancela real, diretamente ligada ao Estado neerlandês e sua administração. Mais do que uma empresa privada pura e simples, seria talvez mais justo considerá-la como uma organização quase governamental à qual os Estados Gerais da Holanda permitiam fazer a guerra, estabelecer os tratados, lançar-se em conquistas militares e engajar-se assim num conjunto de atividades que não pertenciam diretamente aos "mercadores", com os empregados da Companhia se compraziam a nomear-se a si mesmos.
O caso inglês é um pouco diferente. Contrariamente aos holandeses, os ingleses entraram no mercado do Oceano Índico, no fim do século XVI, em posição de fraqueza. Eles tinham de fazer frente principalmente a dois problemas: a situação da Companhia na Inglaterra, em relação a seus rivais potenciais, não era tão certa como aquela da Companhia holandesa e, em relação a esta, seu financiamento era muito insuficiente. Esta falta de capitais não era somente uma carência comercial. Levando-se em conta a fraqueza do poder marítimo da Companhia inglesa no oceano Índico durante os primeiros anos do século XVII, ela não seria capaz sozinha de rivalizar com aquela do Estado da Índia.
No melhor dos casos, os ingleses tinham de esperar umas raras vitórias, como aquelas obtidas ao largo da costa do Gujarate e no golfo Pérsico do começo do século XVII. Esta fraqueza militar foi também a razão da posição marginal à qual foi reduzida a Companhia inglesa, em 1625, no Sudeste da Ásia e no Extremo Oriente. Enquanto se confrontava a Coen e a seus planos, a Companhia inglesa tomava partido da discrição e decidia concentrar suas atividades na Índia e desenvolver um comércio bilateral com a Europa.
Em meados daquele século, essa estratégia começa a dar seus frutos, enquanto o mercado europeu de tecidos indianos tomava seu impulso. Gujarate, Coromandel e Bengala tornam-se os três grandes centros do comércio inglês. Ao mesmo tempo, os comerciantes ingleses, que eram com frequência seja empregados seja associados da Companhia, fizeram, a título privado, incursões progressivas no mercado asiático. Isto se fez em aliança com os grupos de mercadores asiáticos, tais quais os Maraikkayars muçulmanos de Coromandel e os Parsis da costa ocidental da Índia, favorecendo a implantação de comptoirs, como Mardras e, mais tarde, Bombaim e Calcutá.
Pensar que a Companhia inglesa era uma empresa com exclusivos objetivos lucrativos seria um erro. Não era tão fácil passar da longa tradição de corsários do Caribe, que tinham produzido Francis Drake, James Lancaster e outros, àquela geração do século XVII. Desde os primeiros anos de sua presença na Ásia, a Companhia inglesa usava a força no comércio para elevar os tributos, mas, em razão de sua fraqueza relativa, seu poder era muito limitado.
A partir da segunda metade do século XVII, a Companhia retomava a confiança nela. Empreendia mesmo uma guerra com o Império Mongol em 1687-98. Um dos ideólogos à frente da Companhia na época, o senhor Josia Child, escrevia em 1686 que era altamente necessário "fazer avançar os interesses ingleses e de fazer desta Companhia o braço armado do governo inglês na Índia". Isto consistia em proteger os ingleses, não somente dos holandeses "que nos desprezavam como uma tropa de simples viajantes no comércio", mas também dos "indígenas". Child era muito modesto, pois os objetivos da Companhia não eram somente defensivos.
No século XVII, os ingleses ficavam acima dos holandeses, participando de uma só vez do comércio interno na Ásia e do comércio entre a Ásia e a Europa. Para compreender como as coisas se passavam, era necessário perguntar o modo pelo qual os holandeses tinham logrado vencer os portugueses no século anterior. Fato notável foi a decisão tomada pela Companhia de limitar a maior parte de seu comércio às trocas entre a Europa e a Ásia e de deixar os mares da Ásia às empresas privadas.
Centros como Madras e Calcutá tornam-se espaços gerais de operação da Companhia, e o ponto de encontro das redes de um "comércio local", assegurado por navios privados armados pelos ingleses, com destino a diferentes portos da Ásia. Já nos anos 1680, os ingleses faziam fortuna nestas operações e continuavam a enriquecer no curso do século XVIII, ajudando a financiar em parte o retorno dos navios ingleses à Europa. Para a Companhia holandesa, tais disposições tinham parecido inaceitáveis, enquanto para os portugueses elas eram razoáveis.
Sublinhando essas questões, quisemos mostrar que as relações entre os portugueses e os europeus que os sucederam foram mais complexas do que se pensa. Pode-se contentar com a explicação segundo a qual um modo de funcionamento tinha simplesmente substituído o outro. Em 1700, somente restavam na Ásia duas categorias: os comerciantes privados procurando sair do étau de Goa (como de Macau e Porto Novo) e os subprodutos do imperialismo, com sua parte do território (África do Sudoeste e Timor).
Os holandeses e os ingleses dessa época não se reconheciam nem em um nem em outro caso. Apenas setenta anos mais tarde os ingleses detiveram territórios consideráveis na Índia, enquanto no fim do século XVIII os comerciantes privados ingleses procuravam desesperadamente se subtrair às ingerências do governo central de Londres e de seus satélites na Ásia.
A moral aqui não é que a história se repete, adágio que ilustra mais a falta de imaginação dos historiadores do que a realidade de um modelo histórico. A moral, se moral há, é a da natureza mesma do comércio e a das vicissitudes da política asiática, que conduziram em certa direção, de maneira pragmática, os atores desse momento, em sua conjuntura histórica.
Edição Filipe Dal'Bó
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