Futebol: uma certa ideia de cultura brasileira
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Um dos exemplos mais notáveis daquilo que Oswald de Andrade chamou de antropofagia, o futebol brasileiro despertou grande interesse entre aqueles que buscaram entender a força expressiva de determinadas manifestações culturais no Brasil. Tal apelo não escapou à sensibilidade de artistas e ao pensamento de intelectuais que se dedicaram à compreensão do futebol no país, durante o século passado.
Estes autores testemunharam o conjunto de transformações que fizeram de um modismo estrangeiro da elite aristocrática inglesa fin-de-siècle o genuíno esporte popular de massas do século XX; de um fenômeno civilizador moderno o jogo lúdico e tradicional por excelência; de um apanágio da ética, da educação física e da meritocracia burguesa a matéria inventiva para performances corporais e lances de efeito "desinteressados", tão ao gosto do público torcedor e tão propício à fruição estética dos escritores.
Se assim é, seria possível oferecer um painel da evolução histórica do futebol profissional no país, em especial sua relação com a formação da identidade nacional e, de outro, mostrar a recepção do tema futebolístico no ambiente cultural brasileiro, com a abordagem de sua presença incidental nas artes plásticas, no cinema, na literatura, na música e no teatro?
Acreditamos que sim, de tal sorte que elencamos a seguir quatro tópicos. Nestes, tal incidência pode ser percebida:
1. Os intelectuais e a bola: o primeiro exemplo recai no reconhecimento intelectual, ainda que tardio, do futebol. Este se baseia em uma linhagem de autores que se inicia com o sociólogo Gilberto Freyre na década de 1930, quando este cunha a expressão futebol-arte para caracterizar o modo de jogar do brasileiro em oposição ao futebol-força ou futebol científico do europeu.
O ponto de chegada culmina no antropólogo Roberto DaMatta, na década de 1980, quando a prática esportiva passa a ser vista, pela Antropologia Social, como um universo ritualístico extraordinário, capaz de evidenciar os valores mais profundos da sociedade a que pertence. Em contraposição a um usual distanciamento dos acadêmicos e dos eruditos quanto a tradições populares vistas como vulgares e alienantes, desenvolvida por uma certa vertente marxista – a Escola de Frankfurt –, estes autores investiram de maneira positiva na percepção das formas e dos significados originais assumidos pelo futebol no Brasil, que o tornaram objeto de tão calorosa veneração por parte da população.
2. "Dar aos pés astúcias de mãos": este verso composto João Cabral de Melo Neto, notório apreciador das touradas espanholas e ele próprio jogador de futebol amador em sua juventude em Recife, serve de mote para o segundo exemplo aqui evocado, a poética do futebol, cujo eixo gira em torno da habilidade corporal dos brasileiros em campo. Lances novos e fintas desconcertantes, floreios inusitados e despistes surpreendentes marcaram a técnica corporal na forma de praticar o futebol por parte de determinados atletas: do salto do goal-keeper Marcos Carneiro de Mendonça à chilena do centro-avante Arthur Friedenreich; da bicicleta do artilheiro Leônidas da Silva à domingada do zagueiro Domingos da Guia; da folha-seca do meio-campista Didi aos rodopios do ponta-direita Garrincha; da elástica do ponta-de-lança Rivelino à pedalada do atacante Robinho.
São essas as jogadas consagradas por grandes ídolos do futebol brasileiro. Elas têm como baliza norteadora as Copas do Mundo, quando, entre as décadas de 1930 e 1970, foi difundida em âmbito internacional a ideia de um "estilo nacional" de jogo. Pode-se eleger ainda algumas trajetórias de vida de jogadores, oriundos das classes populares, que melhor exemplificam o discurso sociológico sobre a construção deste chamado "estilo de jogo" no Brasil.
3. Cronistas esportivos e 'jogos de linguagem': segundo o crítico Antônio Cândido, a crônica foi um dos gêneros literários que melhor se aclimatou no Brasil, desde a década de 1930. Por sua aparência despretensiosa, vinculada ao efêmero suporte do jornal, ela alcançou uma notável popularidade no país ao se situar ao rés-do-chão, ou seja, em um tom coloquial, de conversa informal, bem próxima do universo cotidiano do leitor.
Uma de suas derivantes mais populares, a crônica esportiva foi uma "invenção" de Mário Filho, segundo seu irmão Nelson Rodrigues, responsável por aproximar o cronista da linguagem popular e do contato com os torcedores, despindo o futebol do caráter pernóstico e formal de que ele até então se revestia, com seus termos em sua maior parte estrangeiros. As ações e as inovações linguísticas deste jornalista nos anos 20, bem afinado com o espírito modernista, serão decisivas para a constituição de uma exímia tradição de cronistas esportivos no Brasil, como o rubro-negro José Lins do Rego, o tricolor Nelson Rodrigues e os botafoguenses João Saldanha e Armando Nogueira, o colorado Luís Fernando Veríssimo, entre outros escribas de escol. Os traços estilísticos e a visão do futebol de tais autores podem ser comparados nesta seção.
4. Futebol é arte?: uma composição de Pixinguinha; um quadro de Cândido Portinari; um conto de Antônio de Alcântara Machado; um poema de Oswald de Andrade; um filme de Joaquim Pedro de Andrade; uma peça de Oduvaldo Viana Filho: eis as obras selecionadas, que têm em comum retratar o futebol. Elas evidenciam a diversidade e o potencial exploratório/explanatório das dimensões pictóricas, dramáticas, literárias, musicais, poéticas e cinematográficas a que está sujeita a representação do futebol no Brasil. A sua elevação à esfera da sublimação artística faz com que os autores de tais obras aliem sua criatividade às formas de comoção coletiva e ao cotidiano mais prosaico dos brasileiros, procedimento muito cultivado pelos artistas filiados ao modernismo. À análise do repertório escolhido, nesta apresentação sintética, assiste-se ao rico panorama da produção das artes nacionais que elegeram o fenômeno futebolístico como tema.
Edição Filipe Dal'Bó
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