Topo

GV CULT - Criatividade e Cultura

O engenho e o mundo: Itinerário intelectual de José Lins do Rego

GVcult

09/09/2015 10h48

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

Lins do Rego, Freyre

Antiógenes Chaves, José Lins do Rêgo, Gilberto Freyre e mais dois senhores em passeio de barco pelo Rio Capibaribe. Recife, década de 40. Crédito: fliporto.net

Em nossa última coluna, falávamos do escritor José Lins do Rego e da sua relação com a fortuna crítica acadêmica. Em continuidade, vamos falar hoje da sua formação e do seu itinerário intelectual.

Sua trajetória tem como divisor de águas o encontro com Gilberto Freyre em 1923, na cidade de Recife, quando iniciam uma duradoura e profícua amizade. De início, estabeleceu-se entre os dois uma relação mestre-discípulo, em que Gilberto Freyre faz-se artífice intelectual de José Lins do Rego. Gilberto Freyre, recém-chegado dos Estados Unidos e da Inglaterra, onde realizara seus pioneiros estudos universitários em Sociologia e Antropologia, introduz José Lins do Rego nos grandes ensaístas europeus e nos modernos escritores de língua inglesa, como Thomas Hardy e D. H. Lawrence, autores pouco conhecidos no Brasil à época. Ao lado de sua erudição literária e acadêmica, Gilberto Freyre transmite a José Lins do Rego seus entusiasmos com a terra brasileira a que voltava a ter contato.

O conhecimento científico e a sensibilidade artística do então jovem Gilberto Freyre fazem com que ele lance as bases na década de 1920 de um movimento de renovação das expressões culturais e de valorização das tradições regionais do Nordeste brasileiro, abarcando a literatura e a pintura, a arquitetura e o artesanato, a culinária e o folclore.

Segundo Gilberto Freyre, cabia ao artista exprimir a particularidade de sua natureza e a originalidade de sua cultura, a fim de poder tornar-se universal, de ser reconhecido internacionalmente e de contrapor-se de forma singular em relação a outros povos. A arte regional, antes espontânea que engajada, antes moderna que modernista, consistia na capacidade do artista de plasmar, de maneira criativa e inconsciente, a multidão de sugestões humanas, físicas e sociais que o meio lhe apresenta.

A fusão entre a cor local e a experiência íntima do artista é que informam a especificidade da arte moderna brasileira ao mundo. Gilberto Freyre combatia assim, por um lado, a dimensão exótica, superficial e pitoresca a que estava associado o regionalismo do Nordeste, desde a segunda metade do século XX, com o advento romantismo; por outro, combatia o cosmopolitismo modernista, tal como ele havia sido concebido pelos intelectuais paulistas da Semana de Arte Moderna de 1922, ligados mais às modas de Paris e às últimas vanguardas européias do que às tradições de sua província de origem.

José Lins do Rego é assim fiel aos ensinamentos de Gilberto Freyre, encampando a tese do moderno regionalismo nordestino e se afastando do mero panfleto político a que estivera até então ligado. Ao mesmo tempo em que se ilustrava e se abeberava na leitura de clássicos da literatura universal, José Lins do Rego cultivava o apego a terra e à dimensão telúrica da vida e da arte, preconizando os valores tradicionais e primitivos da cultura popular.

A liberdade de expressão, o elogio à linguagem oral e a temática das lembranças de infância em um antigo engenho açucareiro são traços da influência entre Gilberto Freyre não apenas na obra como no imaginário essencialmente poético de José Lins do Rego. Após a realização do Congresso Regionalista do Recife em 1926, mesmo com um contato pessoal cada vez mais intermitente, as influências entre Gilberto Freyre e José Lins do Rego continuam intensas no decorrer das décadas de 1930, 1940 e 1950, em uma simbiose de pensamento onde o próprio autor de Casa-Grande & Senzala admite a dificuldade de discernir o que pertence a cada um.

Em breve passagem por Minas Gerais, no município de Manhuaçu, José Lins do Rego exerce suas funções de bacharel em Direito na promotoria pública de uma pequena cidade e aprofunda ainda mais a sua formação literária, com a leitura de A la Recherche du Temps Perdu, de Marcel Proust, e com a assinatura da revista La Nouvelle Revue Française.

Entre 1926 e 1935, fixa residência em Maceió, onde vivencia a sua maturidade intelectual. Na capital alagoana, José Lins do Rego conhece Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos. Faz-se mestre de uma geração de jovens escritores, como Valdemar Cavalcanti, Aloísio Branco e Aurélio Buarque de Holanda.

Nessa época também, atribui-se a José Lins do Rego a orientação decisiva na conversão ao modernismo do poeta Jorge de Lima, suplantando o parnasianismo, apresentando-lhe a poesia singela de Manuel Bandeira e sugerindo motivos poéticos ao autor de O mundo do menino impossível. O repentino aparecimento do ficcionista e a publicação ininterrupta de seus romances extrapolam os limites provincianos de José Lins do Rego. Em 1935, transfere-se para a capital da República, onde se torna cada vez mais senhor de sua produção literária e de sua trajetória intelectual.

No Rio de Janeiro, além dos romances, colabora regularmente em três periódicos da cidade – O Globo, O Jornal e Jornal dos Sports – onde avulta, ao lado do cronista, do dirigente esportivo e do apaixonado torcedor do Flamengo, o homem cosmopolita que se mostra sensível às questões palpitantes no mundo.

Em 1943, inicia suas viagens pela América do Sul, onde profere conferências sobre o romance brasileiro no Colégio Livre de Estudos Superiores de Buenos Aires e de onde extrai o volume Conferências no Prata (1946). Na década de 1950, realiza uma série de peregrinações pela Europa e pelo Oriente Médio, onde, a convite do consulado francês e israelense, visita vários países do Velho Mundo e o recém-formado Estado de Israel.

Assim, de um conjunto de viagens a Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Grécia, Itália, Israel, resultam livros em que colige os seus curtos apontamentos. De uma espécie de diário de bordo vêm a lume Bota de Sete Léguas (1952), Roteiro de Israel (1955), Gregos e Troianos (1956) e parte de O Vulcão e a Fonte (1958) – este último, obra póstuma.

Nesses livros, José Lins do Rego discorre não apenas sobre a paisagem de terras distantes, mas reflete com gravidade sobre temas relativos à condição humana. O Autor palmilha as terras milenares das antigas civilizações greco-romanas e judaico-cristãs, sonda os fenômenos da criação artística e literária, descreve homens em fatos corriqueiros e em situações fortuitas do cotidiano. Para além do turismo que se tornava cada vez mais ordinário nos anos de 1950, o que parece estar em jogo nessas impressões de viagem são também as questões que permeiam suas antigas concepções sobre a relação entre a arte e a vida, o homem e a história, a natureza e a "alma dos povos", tendo, com frequência, como contraponto e como pano de fundo as reminiscências de seu torrão natal.

Destarte, mais do que a descrição de um repórter comum ou de um turista passageiros, o que se nota é uma série de reflexões livres e de pensamentos esparsos que aproximam as crônicas de viagem de José Lins do Rego ao gênero do ensaio. Gênero que, desenvolvido por Montaigne, encontrou grande receptividade entre ingleses e espanhóis, ensaístas estes muito apreciados por José Lins do Rego, como Miguel de Unamuno, Ganivet e Azorin.

No período em que se radica no Rio de Janeiro, apogeu da sua maturidade artística e intelectual, José Lins do Rego repisa as suas concepções de arte regional e arte universal, de identidade nacional e alma popular, de tradição e modernidade, de cosmopolitismo e provincianismo. A experiência da viagem, tão cara aos modernistas brasileiros dos anos 20 em seus empenhos de descobrir o Brasil, aparece em José Lins do Rego pela via inversa, adquirindo, ao mesmo tempo, importância decisiva.

Dessa experiência, e de outras facetas do escritor, continuaremos a falar na próxima coluna.

Edição    Filipe Dal'Bó e Samy Dana

Bernardo Buarque de Hollanda

 

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.