Riacho Doce: um romance atípico de José Lins do Rego?
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Publicado originalmente em 1939, Riacho Doce marca um apogeu no conjunto da produção literária de José Lins do Rego. Trata-se da oitava e consecutiva obra ficcional do autor, após o cumprimento de uma ininterrupta sequência de publicações – um romance por ano – desde que apareceu com Menino de engenho, em 1932. Feita a arrancada de fôlego, já senhor de uma volumosa obra, José Lins tornaria sua ficção mais espaçada com o passar do tempo, aguardando a maturação necessária para ressurgir, de modo fulgurante, como em Fogo morto (1943).
Tal como havia feito nos dois romances anteriores – Pureza (1937) e Pedra Bonita (1938) – Riacho Doce é também uma busca por alternativas à paisagem da região natal, a Zona da Mata canavieira, a que o autor ficara associado com a consumação do seu Ciclo da Cana-de-Açúcar. Sempre sensível à crítica – o escritor era capaz de introduzir mais diálogos num romance, desde que um especialista observasse a sua necessidade na obra anterior, como de fato ocorreu com Álvaro Lins, em sua coluna literária no Correio da Manhã – José Lins leva às últimas consequências a determinação em propor novos ambientes para seus enredos. No fundo, era como se ele quisesse testar os próprios limites inventivos e mostrar aos críticos a autonomia de sua imaginação, capaz de extrapolar as fronteiras geográficas e imaginárias da infância.
Dessa feita, a ousadia o leva a paragens inusitadas. Na primeira parte do romance, o pano de fundo da narrativa se transplanta para um burgo provinciano da longínqua Suécia, país que o autor conheceria somente nos anos 1950, contrariando a visão geral segundo a qual apenas escrevia amparado na memória e na experiência. Se as gélidas e protestantes terras da Escandinávia são o cenário com que principia o romance, nas lonjuras onde ressoam as notas musicais de Bach, Beethoven, Chopin e Schumann, logo o autor nos reenvia à quentura ensolarada dos trópicos, "aos eflúvios da luxúria tropical", com seus cantadores de coco, seus sambas, seus reisados, suas cheganças, seus pastoris.
Na segunda e principal parte, José Lins situa o desenrolar da trama na praia de uma até então pacata cidade do litoral de Alagoas, homônima ao título do livro, esta sim que o autor conhecera na época de sua residência em Maceió, entre os anos 1920 e 1930.
Riacho Doce é ainda algo mais do que um experimento extraordinário ou a culminância de uma etapa criativa na trajetória do escritor. Pode ser lido também como a condensação literária de temas que marcaram o debate social brasileiro no correr da década de 1930 e que estariam por convulsionar o mundo no decênio seguinte. Destes temas, é possível elencar um par: raça e nacionalidade.
Ora, o livro é lançado às vésperas da eclosão da Segunda Guerra mundial, na iminência do que viria a ser um catastrófico conflito deflagrado por países da Europa, na sanha de impor ao mundo a hegemonia de uma raça ariana pura e supostamente superior. Em contrapartida, era o Brasil à época o laboratório de um debate que procurava, ao menos na superfície, inverter os polos da relação conceitual entre raça e cultura, passando a valorizar o segundo em detrimento do primeiro. Esta inversão culminava com o famoso elogio da mestiçagem na história nacional, tal como fizera do modo pioneiro um dos amigos mais íntimos de José Lins do Rego ao longo da vida, o autor de Casa-Grande & senzala (1933), Gilberto Freyre.
Nesse contexto, o que dizer do arrebatamento amoroso de uma heroína de origem nórdica, no frescor dos seus vinte e poucos anos, na brancura de quem herdou as tranças louras da mãe, por um caiçara cor de bronze, com seus olhos castanho-escuros e seus cabelos pretos anelados, capaz de seduzi-la com suas doces cantigas de amor, com seu enleio praiano-mestiço, em meio a uma ambiência quase mítica da costa atlântica do Brasil?
E o que dizer da temática do petróleo, que se tornaria a pedra de toque do nacionalismo brasileiro nos anos 40 e 50, personificada no romance na figura de "estrangeiros de cabelos loiros e olhos azuis", técnicos em engenharia enviados por uma agência alemã com o objetivo tão-somente de extrair o "jorro milagroso", aquele que seria um dos recursos naturais mais valiosos do mundo, na segunda metade do século XX?
Deixemos em aberto essas perguntas, apenas a título de contextualização histórica, pois o romance em mãos nada mais permite do que lançá-las – aliás, não há talvez autor que tenha declarado maior aversão a romances ditos engajados ou sociais como José Lins do Rego, em época, lembre-se, plena de engajamentos e de textos missionários. Por isto, apenas de uma maneira muito sutil é possível perceber a introdução do tema racial, como, por exemplo, no segredo sobre as origens judias da professora Ester, protagonista da primeira parte do romance, que emigra, um tanto forçosamente, para a Argentina.
Junto aos referentes externos, deixemos ao leitor também a possibilidade de acompanhar a dissecação dos tipos psicológicos de José Lins, feitos com cada vez mais profundidade introspectiva e sempre conjugados à força indômita da natureza – "fúria de furacão" –, que faz emergir os arquétipos primordiais da terra, do ar, da água e do fogo. Assim, a moldura e o conteúdo ficcional de Riacho Doce oferecem muito mais do que um simples deslocamento no espaço em relação às obras precedentes, não tendo sentido rotulá-lo sob a inócua categoria de "romance independente".
Na presente obra, o aprofundamento dos conflitos e dos mistérios da alma humana – a liberdade e a servidão, a audácia e a covardia, o amor e o ódio, a loucura e a solidão – é empreendido com tal sucesso que poderíamos fazer eco à observação de Mário de Andrade, um dos grandes apreciadores do livro: "Riacho Doce não repete nenhuma das obras anteriores do autor, mas repete Lins do Rego em tudo quanto faz o romancista que ele é".
Edição Filipe Dal'Bó e Samy Dana
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.