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GV CULT - Criatividade e Cultura

Erro acertado

GVcult

06/08/2015 06h09

Por    André Dib

É aquela velha história do "se eu soubesse". Quando acontece alguma coisa que se você soubesse teria tomado outra decisão antes. Ah, se eu soubesse que não tinha luz eu teria ficado no escritório até mais tarde. Se eu soubesse que você também vinha pra cá tinha te dado uma carona. O problema é quando passa muito tempo.

E no caso dele havia passado. Quando era criança tinha o sonho de ser muito rico. Sonho que muitos tem. Sonho que alguns conquistam. Sonhos que poucos rejeitam. Em uma realidade onde tudo é dinheiro e dinheiro é tudo, tê-lo é aconselhável. A ideia é que sendo rico tem-se liberdade e felicidade diretamente proporcional a riqueza. Por conta disso, uma coisa leva a outra e a outra coisa leva a uma. A conclusão é que todos queriam ser ricos e ele não era diferente.

Seu primeiro emprego não foi bem um emprego. Apenas lhe dava alguns trocados, que na sua cabeça de menino eram os primeiros tostões de sua fortuna. Se intitulava caixeiro viajante. Com uma maleta de couro grande o suficiente para lhe servir de cama, saia pelo bairro vendendo coisas. Com menos de uma dezena de anos e mais de uma centena de produtos, saia em busca de assíduos consumidores para seu portfólio de ofertas. Pedra, cadarço, pano xadrez rasgado, clipes, brinquedos e seu produto premium: uma vale erro. Era seu produto mais caro e com mais promessas de funcionalidade e qualidade. Se tratava de um papel de carta dobrado no meio na parte de fora dizia "Vale-erro: quando errar abra" em letras garrafais.

O público alvo do seu melhor produto eram os adultos. Durante as suas viagens comerciais pelo bairro o garoto percebeu que quem escondia o pote de ouro eram os adultos com mais cara de cansado. Aqueles que chegavam tarde em casa com uma cara tão amassada quanto a camisa. As crianças não tinham dinheiro e as mulheres que passavam o dia em casa só compravam algumas de suas quinquilharias depois de apertar sua bochecha e rugir "que fofo". Elas não pagavam muito porque não levavam seu trabalho a sério.

Por isso inventou o vale-erro. Destinado a adultos cansados com roupas amassadas. Seu público alvo era bem definido e sua estratégia de marketing era simples, uma pergunta: "Você já errou na vida moço? Se errar de novo tem o Vale-erro". A mensagem era clara e cativante para aqueles que já erraram bastante e sabiam que errariam mais ainda. Algumas donas de casa também se interessavam pelo produto. Os únicos que não viam graça eram os pequeninos.

Mas toda essa história de caixeiro viajante eram apenas imagens de sua infância. Coisas que haviam passado há muito tempo. Assim como a faculdade, as namoradas, as brigas e acertos. Tudo passara fazia muito tempo e era como se tivesse assistido a um filme da sua vida e no final tivesse a sensação de que não sabia que tudo aquilo tinha acontecido. Como se fosse fazer diferente agora, para evitar alguns erros que carregava consigo desde então.

É aquela velha história do "se eu soubesse". Quando acontece alguma coisa que se você soubesse teria tomado outra decisão antes. Agora não havia outra coisa a fazer que não continuar vivendo. O passado não mudaria. Deixou a camisa amassada pendurada no cabide e pegou uma caixa que continha algumas preciosidades da vida. Lembranças de viagens, fotos…coisas velhas legais e emocionantes.

Conforme encontrava suas memórias pensava no "se eu soubesse". Redesenhava sua vida e brincava de Deus ao trocar de rotina, de família, de cidade e de tudo na sua imaginação. Lembrou-se de muitos momentos bons e percebeu o quanto errou em outras situações. Era um momento melancólico, mas saudável. E finalmente aconteceu, se viu um cliente em potencial do eu de 50 anos atrás. "Vale-erro: quando errar abra". Passou a mão por cima das letras de criança como quem pode tocar um anjo do céu. Não se lembrava o que estava escrito dentro do seu produto tão enriquecedor. E quando foi ler, desistiu. Aquilo era pra quem havia errado. Não para quem havia mudado. Simplesmente cresceu e sua vida mudou. Assim como a natureza manda. Talvez aqueles adultos cansados de camisa amassada não fossem tão errantes assim. Talvez só estivessem correndo atrás dos seus sonhos.

Guardou o bilhete, se soubesse o que viria depois na vida talvez não tivesse se preocupado tanto com os erros.

E ai, ainda quer ler o bilhete?

Edição    Filipe Dal'Bó e Samy Dana

André Dib

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.