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GV CULT - Criatividade e Cultura

Sobre o romance "Sérgio Y. vai à América"

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29/06/2015 06h02

Por    Isabella Pileggi

………..e  Paula Lottenberg

 

A P VSérgio Y. vai à América (Companhia das Letras, 2014), de Alexandre Porto Vidal, é um romance de narrativa em primeira pessoa, cujo narrador é Armando, médico de Sergio, personagem central da obra. A história se baseia em dois planos temporais: o primeiro é o tempo presente, em que Armando escreve a narrativa; o segundo é o período do próprio romance, linear, relatado por Armando.  A história se passa em São Paulo.

A obra gira em torno do psiquiatra Armando, viúvo há sete anos de Heloísa e pai de Mariana, que vive em Chicago com seu recém marido. Porém, como já dito, a história de fato se passa anos antes da atual situação do médico. Em uma tarde chuvosa, ele recebe em seu escritório um jovem de dezoito anos que se queixava da sua deprimida natureza, da qual não conseguia escapar. Sergio, durante as sessões, referia-se bastante ao seu bisavô, Areg Yacoubian, que decidira, ainda adolescente, deixar a Armênia e imigrar para o Brasil.

Após quase um ano de tratamento, Sergio Y. viajou a Nova Iorque com os pais durante as férias, porém, ao voltar, comunicou a seu psiquiatra que o tratamento não seria mais necessário, que ele, durante uma de suas sessões, havia descoberto qual rumo deveria tomar para encontrar a felicidade. Só tornou a ter notícias do rapaz quando, certo dia, encontrou Tereza, mãe de Sergio, no supermercado. Ela lhe contou que seu filho manifestou vontade de se mudar para Nova Iorque e lá vive faz quatro anos. Fez cursos de culinária e agora estava abrindo um restaurante. Curiosamente, Tereza revelou a grande importância que ele, Armando, teve para a felicidade de Sergio e que este manifestava muito respeito pelo médico.

Os meses se passaram, mas o que Armando não esperava era ter notícias de Sergio mais uma vez em menos de um ano. Entretanto, dessa vez, não eram boas as novidades que lhe chegaram: uma pequena nota no jornal informava o falecimento de Sergio Yacoubian, assassinado e encontrado morto no quintal de sua casa em West Village. Atordoado com a notícia, o psiquiatra torna-se obcecado pelo caso da prematura morte de Sergio. Suas inquietações giravam em torno do que havia se passado com ele durante esses anos vivendo em Nova Iorque. Além disso, sentia-se parcialmente culpado pelo trágico destino do garoto – nem ele próprio sabia explicar o porquê de tal convicção, mas era assim que se sentia.

West_Village

West Village. Fotografia de Heath Brandon (2009)

Um dia, lembrou-se de que, nos Estados Unidos, as informações sobre processos judiciais são de domínio público. Assim, conseguiu o contato de uma agência de investigações que poderia selecionar as principais informações do caso e que pudessem ser do seu interesse. Porém, ao se comunicar com o tal escritório, o doutor descobre que, além de não ter nenhum registro de óbito no nome de Sergio Y., existia uma outra pessoa com o mesmo sobrenome e que havia sido morta nas mesmas condições e data que Sergio. Foi então que descobriu que Sandra Yacoubian, indivíduo em questão, e Sergio Yacoubian eram a mesma pessoa.

A trama vai se desenvolvendo enquanto as perguntas do médico só aumentam, já que afirma nunca ter percebido quaisquer indícios de transexualidade em Sergio. O psiquiatra viaja até Nova Iorque e aproveita para inteirar-se do caso Sergio. Contata a médica nova-iorquina de seu paciente, Dra. Cecilia Coutts, que lhe conta todo o processo de mudança de sexo de Sergio. Além disso, ela lhe elucida sua principal dúvida: como havia sido útil para a felicidade de Sergio se ele nunca soube das questões envolvendo sua sexualidade. Segundo a Dra. Coutts, Sergio relata a ela a importância que o livro Angelus teve em sua vida para que pudesse ter coragem para enfrentar a sua transexualidade. De acordo com ele, esse livro nunca teria chegado em suas mãos se não fosse pelo médico e foi essencial para sua auto compreensão.

A questão da sexualidade de Sérgio Y. é central no romance, porém a forma como ela é tratada varia muito conforme as personagens que estão envolvidas. A aceitação de seus pais, de seus médicos e de sua amiga são pontos que provocam reflexão no leitor sobre como a mudança de sexo é vista pela sociedade hoje. No livro não há ninguém que não aceite sua transexualidade, porém cada um aparece com conflitos diferentes sobre o tema. A mãe acredita que a transexualidade do filho seja culpa dela, o pai não consegue olhar o filho vestido de mulher, ou a amiga que usa argumentos religiosos para justificar a não naturalidade de sua orientação sexual acabam por demonstrar seus preconceitos de forma sutil.

Por pertencer à classe dominante da sociedade, o protagonista consegue mudar-se para um lugar onde ninguém o conhece e realizar o difícil processo da mudança de sexo. Essa posição social também o permite um maior conhecimento das pessoas que estão a sua volta sobre o tema, o que é importante para ter maior aceitação.

Em contraponto podemos colocar o filme Madame Satã, dirigido por Karim Aïnouz, no qual o protagonista é um travesti negro e pobre. Pelo seu lugar de exclusão social, a sexualidade de Madame Satã é repudiada. A personagem do filme é discriminada constantemente e sofre atos de violência por sua orientação sexual, ou seja, não há nem a aparência de aceitação como há com o protagonista do romance de Vidal. O lugar de classe de Madame Satã é determinante nesse quesito, uma vez que sua posição social já o torna marginal, ainda mais com comportamento considerado sexualmente anormal, ele só é colocado mais à margem da sociedade.

Por outro lado, pensando a partir da frase "a narrativa é a mola propulsora da autorreflexão" (MOREIRA, 2011), no romance de Alexandre Porto Vidal pode-se perceber os dois eixos centrais da história do livro. O primeiro deles seria a própria personagem principal, Sérgio, que, ao ler a biografia de Angelus comprada em um museu, se reconhece naquela narrativa e descobre no que se baseia sua infelicidade constante e como mudá-la. O segundo eixo de interpretação está na visão de Armando sobre a narrativa de seu paciente e como esta é capaz de provocar no médico uma autorreflexão.

Um olhar que a narrativa propõe internamente como autorreflexão aparece nas questões que o narrador se coloca sobre a misteriosa história de seu paciente e como essa nebulosidade sobre sua história pessoal impede o médico de sentir-se confortável consigo mesmo. O caso de Sérgio acabou por tomar grande importância na vida de seu antigo psiquiatra e seu desenvolvimento revela como a vida do paciente passa a gerar importante reflexão pessoal para seu médico.

A história de Sérgio Y deve ser encarada, portanto, como uma mistura entre narrativas literária e sociológica, já que a pesquisa do médico para descobrir a história de seu paciente acaba envolvendo-o de forma também emocional e os acontecimentos narrados não podem ser encarados apenas como verdades absolutas.

 O próprio sociólogo Octávio Ianni elucida isso em seu texto Sociologia e Literatura, no trecho: "Sim, a metamorfose da pesquisa em narração, ou conceito, categoria e interpretação, é sempre um processo no qual entra a imaginação. Não se trata da imaginação inocente, mas instigada pelos enigmas das relações, nexos, processos, estruturas, rupturas e contradições que povoam a reflexão. Nesse sentido é que a interpretação científica mobiliza rigor e precisão, tanto quanto paixão e inspiração".

Vale ressaltar o uso da letra Y no sobrenome de Sergio. Biologicamente, o cromossomo Y indica que o ser vivo é macho, homem. Essa questão se associa intimamente com a sexualidade de Sergio: ele possui o Y até no sobrenome, mas não o é.

Edição    Filipe Dal'Bó e Samy Dana

Isabella e Paula

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.