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GV CULT - Criatividade e Cultura

Dois Irmãos, de Milton Hatoum

GVcult

26/06/2015 06h02

Por    Maria Thereza Rios

……….e Mateus Albano

 

Two BrothersBaseado nos três principais pilares que alicerçam as obras de Milton Hatoum – Manaus, família e decadência – Dois Irmãos (Companhia das Letras: 2000) retrata a rivalidade dos gêmeos Yaqub e Omar sob a perspectiva do narrador Nael. Filho da empregada doméstica Domingas, o narrador protagoniza o grande enigma da trama ao tentar descobrir qual dos gêmeos é o seu pai. À medida que o livro se desenvolve por meio de flashbacks e das histórias por ele lembradas, Nael também busca entender o seu papel dentro da casa, na condição de agregado e de filho bastardo, observando uma história da qual ele também faz parte. Em uma família de origem libanesa, as relações perpassam por paixões desmesuradas e até mesmo incestuosas, pelo sentimento de vingança e pelas metáforas construídas a partir do declínio de Manaus em meio à Ditadura Militar.

Um dos mais notórios expoentes da literatura contemporânea brasileira, Milton Hatoum, mais uma vez, dá espaço a vozes silenciadas, visando à desconstrução de estereótipos culturais e de convenções ideológicas. Como constata Wander Melo Miranda, a literatura contemporânea encerra com o paradigma moderno na definição do cânone literário do país. Em um momento de perda de sentido na relação entre o novo e o nacional, centros afastados das metrópoles como Manaus e o convívio familiar ganham espaço nas obras brasileiras. Além disso, a estrita dependência do mercado capitalista e do marketing cultural legitimam o trabalho de escritores como Hatoum, originando objetos literários híbridos a exemplo de Dois Irmãos.

Se não fosse por essa hibridez, os gêmeos Yaqub e Omar seriam apenas personagens antagônicos no desenvolvimento da obra. No entanto, Nael rompe com a rigidez e a dicotomia das descrições no contexto da Ditadura Militar e da morte de Antenor Laval, professor de francês e crítico do regime. Nessa passagem, Yaqub, visto como alguém exemplar pelo narrador até então, demonstra-se indiferente ao clima de tensão e medo que se instaurava em Manaus. Por outro lado, foi a primeira vez que Nael não odiou Omar, haja vista que o mais novo dos gêmeos compartilhou da sua indignação e ainda teve coragem de homenagear o professor em praça pública. Assim, Hatoum sintetiza peculiarmente o amplo conflito da ditadura através das relações entre os gêmeos e o narrador, criando um contraste das posturas políticas de Yaqub e Omar com a imagem deles construída até então.

No que diz respeito a rivalidade bíblica entre os gêmeos, é possível lembrar de Caim e Abel nos dois momentos de agressão cometidas pelo Caçula: ambas as vezes de maneira covarde e deixando cicatrizes no corpo de Yaqub. Omar, o Macunaíma manauara, possuía imensurável inveja do progresso e das conquistas do irmão mais velho, tanto no sentido profissional – era engenheiro formado na Universidade de São Paulo – quanto no sentido pessoal, visto que Lívia, a mulher de Yaqub, foi motivo de disputa dos gêmeos desde a época da juventude. Sua mãe, Zana, sempre desejou, até o momento de sua morte, que os filhos se reconciliassem e conseguissem viver em paz ao lado dela; entretanto, é evidente sua imensurável devoção ao Caçula, independentemente da irresponsabilidade e falta de comprometimento do filho, deixando Yaqub de lado em determinados momentos.

No entanto, é impossível resumir o conteúdo da obra nos gêmeos e na maneira com que eles se relacionam com o narrador. Há grande ênfase por parte de Hatoum e da literatura contemporânea brasileira na figura da família. Dessa maneira, Halim e Zana, pais dos gêmeos, Rânia, a irmã mais nova, e Domingas, mãe de Nael, são figuras imprescindíveis para a trama. A mestiçagem observada com o nascimento do narrador nos remete invariavelmente à obra Casa Grande & senzala, de Gilberto Freyre, uma vez que o menino é acolhido pela família sem que qualquer importância fosse dada às suas origens e à violência sofrida por sua mãe. Halim, sempre tão reticente e contrário à ideia de ter filhos, assume o seu neto bastardo como se fosse seu próprio filho, sendo o grande responsável por contar a Nael a maioria das histórias que constituem a obra.

As paixões desmedidas que movem e incendeiam a família geram enormes consequências. Se Halim era contrário à ideia de ter filhos, Zana valorizou cada momento da convivência com seus descendentes, apesar da já citada preferência por Omar, o filho baderneiro e bon vivant. Tanto que Zana apoia quando o mais velho é mandado ao Líbano com apenas 13 anos e sozinho, após uma briga física com o irmão, desde que o Caçula permaneça em Manaus ao lado da mãe. Ademais, a irmã mais nova Rânia nutria um afeto e uma devoção tão grande em relação aos gêmeos que a convivência beirava ao incesto em determinados momentos, fazendo-a ignorar todos os pretendentes introduzidos por sua mãe por nunca encontrar algum que sintetizasse as qualidades de seus dois irmãos.

Assim, Dois Irmãos traz uma constante confusão entre os limites do público e do privado, seja nas relações patrão-empregado, seja nas relações no interior da família dos gêmeos. Para Nael, descobrir qual dos dois irmãos é seu pai é também descobrir as suas origens. Conforme a trama se desenrola, o narrador, que observa tudo como se estivesse olhando através da fechadura da porta, vai formando a sua própria personalidade. É fundamental lembrar que Nael, além de narrador, é o autor do livro e, enquanto todas as personagens presentes possuem minuciosas descrições físicas e psicológicas, o leitor tem ciência do nome de quem conta a história apenas nas últimas páginas. Portanto, nota-se que ele estava suficientemente perto para narrar os acontecimentos, mas distante o bastante para não participar da vida familiar.

Concomitantemente às descobertas e aos flashbacks do narrador, há um substancial processo de decadência no enredo, que acompanha o declínio da capital amazonense. As mortes de Domingas, Halim e Zana ocorrem de modo semelhante e metafórico: a eterna rivalidade entre os irmãos e a maldade de Omar parecem degradar as personagens, fazendo com que elas se deitem e não se levantem mais, como se desistissem de buscar a paz. Ao mesmo tempo, o começo do livro, por volta da década de 1940, mostra uma cidade próspera que colhe os frutos do Ciclo da Borracha; no final, em meados de 1970, a implementação da Zona Franca de Manaus causa o fim dos igarapés e da cidade flutuante, interrompendo a relação de identidade entre a história contada por Nael e os locais em que tudo aconteceu.

O livro termina sem que o leitor tenha a certeza sobre a paternidade de Nael. Fisicamente idênticos e psicologicamente opostos, nem Yaqub e nem Omar foram capazes de assumir o filho. Deixar a questão subentendida pode ter sido o método encontrado pelo narrador para evitar o maniqueísmo envolvendo os seus dois possíveis pais. Além disso, o sentimento de exclusão que ele sente ao longo da história, mesmo que suavizado pela bondade de seu avô bastardo Halim, é ratificado pela ambiguidade vivida por Nael, que até a última página não descobre se faz ou não faz parte da família. Afinal, a única certeza que Hatoum transmite com Dois Irmãos é que o leitor depende exclusivamente dos relatos e das impressões de Nael (anagrama de 'anel'), anteriormente uma voz silenciada.

Edição    Filipe Dal'Bó e Samy Dana

Maria e Mateus

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.