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GV CULT - Criatividade e Cultura

“Celecanto Provoca Maremoto” e o Brasil contemporâneo

GVcult

12/06/2015 11h05

Por    Marcelo Augusto Marques

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Os jardins de Inhotim resgatam e defendem uma certa ideia de beleza e idílio, naturais, tal como descreveu Paulo Prado em "Retrato do Brasil", através da conservação das formas vegetais e animais, visando remediar a destruição ocasionada pelo progresso, estradas e cidades, as riquezas e as penúrias que o minério de ferro proporcionou ao âmbito local. A exuberância da mata nativa preservada foi somada as experiências de outras naturezas tropicais que ali se decidiu recriar, conjurando ao elemento nativo o fator do exotismo, resultando em uma convivência articulada e imposta entre as espécies vegetais, perpetrando um referencial de simultaneidade e de mobilidade, estabelecendo inter-relações físicas entre essas espécies, a vontade criadora do homem e os dinamismos e caprichos da natureza.

O projeto de Inhotim, além de bastião da arte contemporânea e dos seus esforços por legitimação, no intuito atentado por Rodrigo Naves, implicou em um processo de cicatrização da terra descendente da violência e da deformação causadas pelas ações desmensuradas dos homens na natureza, com suas calçadas e almas de ferro, alguns dos legados de suas doces heranças itabiranas. Os jardins ainda realizam algo como um mecanismo de transição entre a arquitetura e a natureza, uma compensação ao racionalismo e o traço fixo da geometria construtora, que dialogam diretamente com as obras que congregam.

A arquitetura da galeria Adriana Varejão impõe, segundo Guilherme Wisnik em "Experiência concentrada", uma dialética entre retração e expansão, peso e suspensão, reforçando o signo de passagem. É o início de uma viagem sensorial e de imersão estética, cujo objetivo é a sensibilização do interlocutor e o estabelecimento de empatia com a arte, de possibilidade de reflexão e de esclarecimento, que vai se realizando do início ao fim.

A obra Celecanto Provoca Maremoto, de Adriana Varejão, foi empreendida entre 2004 e 2008, cujo destino, original e final, seria o referido pavilhão que homenageia a artista em Inhotim, ocupando, destarte, o segundo andar através de 184 painéis em gesso e pintados em tinta óleo, em uma dualidade de brancos e azuis, que ocupam todas as paredes do recinto. Os painéis visam encarnar a representação de azulejos, de maneira que, segundo Lilia Moritz Schwarz, "Pérola Imperfeita", é possível deslindar que Varejão quer transformar suas telas nas paredes das igrejas, dos palácios, das casas, das ruas, reforçando o caráter híbrido dessa forma de manifestação artística, que foi compartilhada e partilhada entre diversas culturas em diversos tempos, no Oriente e no Ocidente.

O azulejo seria uma espécie de mestiço, que na medida em que foi recobrindo ambientes sagrados e banais, usado como símbolo de poder e de distinção, com valor de arte e aura, permitiu ao artista usá-lo como maneira de narrar práticas e construir histórias, unificando temas e somando, colocando em diálogo dissonâncias e pluralidades. Adriana propõe uma arqueologia das formas da sociabilidade e da institucionalização dos fatos sociais que derivaram da formação do império português e das trombetas e espadas civilizatórias do quinto império, da colonização, da interiorização da metrópole e da construção do Brasil como Estado-nação e comunidade imaginada, lastreada no comércio humano, no trabalho escravo, na violência e na religião, no almejo por uma comunidade de desiguais.

Varejão recria através dos mecanismos de mimeses e do falso espelhamento, uma narrativa simbólica nova, relida e retraduzida da realidade. Nos encontramos em um processo que funde diferentes culturas e modos de civilização, que estabelece uma amálgama, nascida do processo dialético da doçura e da violência da construção de uma comunidade imaginada como Brasil, tal como na visão de Gilberto Freyre.

É dentro dessa perspectiva que Varejão propõe um festim canibal, um canibalismo do Ocidente e dos trópicos, tomando para si a antropofagia de Oswald de Andrade no sentido de adoção do referencial de que no Brasil houve uma deglutição de uma cultura pela outra, dando ao Brasil uma civilização múltipla, ao mesmo tempo que una. É possível identificar tal verve em Celecanto, já que a artista parece forjar simulacros e uma nova ordem imagética que não se encerra em si, mas, provoca reflexão e crítica sobre os signos que configuram nossa longa história.

Ao recortar pedaços das histórias, estabelece-se uma nova corporalidade e forma para a arte, embaralhando as ideias, do sincretismo da religião, do estado como Leviatã, mas também como Behemoth, da plasticidade de matiz buarquiana, da configuração de um tecido social frouxo, de maneira que mesmo que mesmo na leveza dos fragmentos soltos e na aparência de desordem, os mesmos completam-se entre si e dentro da lógica e do sentido que regem a construção do painel. E assim, é possível, rememorar Octavio Paz que buscou redescobrir a figura do mundo, desencantado, em seus fragmentos, em seus signos, que estão em rotação, propulsados pela incongruência entre o criar e o viver na contemporaneidade, de maneira a resistência só pode se dar desenvolvimento da crítica e pelo reconhecimento da outridade e da universalidade, da alteridade e do outro.

Edição    Filipe Dal'Bó e Samy Dana

Marcelo

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.