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GV CULT - Criatividade e Cultura

Inhotim e a Arte Contemporânea

GVcult

08/06/2015 05h55

Por    Samuel Felipe Ribeiro de Carvalho

AO

Palmares, Pernambuco, 1952; vive no Rio de Janeiro Ão, 1980. Projeção de filme P&B 16 mm em looping e instalação de som. Créditos: inhotim.org.br

 Quando remetemos à palavra museu, um conceito pré-concebido nevoa a nossa mente: a de uma estrutura similar a um cubo branco, geometricamente bem arquitetado para dar a cada obra de arte exposta uma qualidade singular e sublime, em outras palavras trata-se da criação de um espaço incapaz de prejudicar a apreciação de um objeto sobre si mesmo. Apesar de essa ser uma característica mantenedora de museus em muitos espaços no Brasil e no mundo, a partir da segunda metade do século XX, esse cenário começou a passar por constantes transformações, especialmente pela necessidade de atualização e sucessivas alterações na forma como os artistas se manifestam e concebem as suas obras no contexto contemporâneo.

A essa mudança na forma de se apresentar dos produtores artísticos ao mundo hodierno, principalmente após serem elevados a classe de fenômenos midiáticos no decorrer da década de 80 – nos Estados Unidos, na Alemanha e na Itália (no Brasil, em escala menor, com a Casa 7 e a Geração 80) –, está embaciado o fenômeno da transposição da Arte Moderna para a Arte Contemporânea. Segundo palavras de Anne Cauquelin, "tal alteração de ordem no campo das artes plásticas deve-se a dois fatores: a dissolução da relação íntima entre produtor e fruidor da obra e o despontamento de novas tecnologias de transmissão da informação que revolucionaram a nossa forma comunicacional e organizacional enquanto sociedade". Agora os mais diversos grupos humanos estão conectados em rede, esta retroalimentada em si mesma e capaz, via intermédio da linguagem, de apreender realidades exteriores e visões de mundo plurais, possibilitando a cada ser uma autonomia na gestão de dados, contatos e negócios.

É dentro dessa era das comunicações cibernéticas que a Arte Contemporânea brota, num contexto dominado pela lógica do mercado global e por concepções artísticas inconformadas com a bricolagem de superfície e questionadoras das classificações impostas por museus e galerias ("Afinal, o que é arte?"). Ademais, paira a dúvida sobre o pensar a obra de arte para além da ideia de um mero objeto entre outros, ou seja, ela também não comportaria uma fratura entre o espaço da obra e o espaço do mundo? Não teria ela perdido o seu senso de autonomia?

Diante de uma questão tão cara a toda Arte Contemporânea, surge em Brumadinho, em meados da década de 1980, a 60 km de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, um espaço nada convencional daquele que estamos habituados, o Instituto Inhotim. Esse ambiente, idealizado por Bernardo Paz e a maior exposição museológica a céu aberto da América Latina, conta com a contemplação de variadas manifestações e proposições artísticas distribuídas entre esculturas, instalações, fotografias e vídeos, dentre as quais se encontra a obra Ão, datada de 1980, de autoria do escultor, desenhista e artista performático, Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão ou simplesmente Tunga, que será a análise do presente ensaio.

Isolado no meio de uma floresta, propositalmente escolhido para aguçar a observação e a experimentação corpórea, com traços arquitetônicos imponentes (como os seus imensos vidros) que mimetizam as formas da natureza, a Galeria Tunga promove, num único espaço, o diálogo das principais produções desse artista plástico brasileiro, trazendo à tona o exercício do sonho e do imaginário. A videoinstalação Ão, um dos acervos da galeria, encontra-se na parte mais profunda, num ambiente desértico e obscuro, após descida em um longo corredor que nos remete aos tempos das tabernas medievais.

Em forma de minidocumentário, a obra descreve uma seção curva do trecho que liga São Conrado a Gávea do antigo túnel Dois Irmãos, inaugurado em junho de 1971, na cidade do Rio de Janeiro. Parece um contexto banal, do cotidiano das construções civis, se não fosse a desconfortante e doentia sensação de o espectador não saber a entrada do túnel, tampouco a sua saída, característica diretamente relacionada à seleção, por parte do artista, do frame de partida e finalização do vídeo.

Não bastasse a perturbação do sentido visual, a audição do visitante é também comprometida com o reverberar ad infinitum do refrão da música "Night and Day", de Frank Sinatra. O ecoar do som é reforçado com a medonha e periódica aparição do número 70, incrustrada no asfalto, uma construção simultaneamente irônica e pleonástica diante da nossa leviana tentativa de fuga ("Se tenta…", "Se tenta…"), seja do ambiente da galeria, dos problemas que assolam o Brasil (corrupção, supersaturação do transporte público, educação de qualidade para poucos, Justiça letárgica, etc) ou de nós mesmos.

Todas essas construções simbólicas promovidas pela obra de Tunga nos causam angústias e alucinações mentais, nos levam a um estado de transe, de aprisionamento temporal-espacial entre o futuro (a saída está logo após a curva), o passado (as faixas do asfalto passam e desaparecem) e o presente (as luzes ao lançarem seus brilhos sobre o asfalto e sobre as linhas do túnel, desencantam o observador que se dá conta da sua realidade, logo da sua imobilidade). O próprio som da palavra Ão, quando pronunciado sequencialmente, traz essa sensação de estarmos numa eterna meditação hipnótica, num encarceramento onde há um conforto ilusório por abrirmos mão de nossa própria condução perante a vida.

Tal efeito anestésico da videoinstalação Ão pode ser comparada com a nossa construção de identidade nacional, uma vez que, segundo José Luiz Fiorin, "a identidade autodescrita do brasileiro é sempre a que é criada pelo princípio da participação, da mistura (…) Ocultam-se o preconceito, a violência que perpassa as relações cotidianas etc. Enfim, esconde-se o que opera sob o princípio da triagem". Esse confronto entre o "ser" e o "parecer" é o retrato característico de nossa sociedade, em descompasso temporal, presa num túnel sem entrada e saída, em que futuro, presente e passado se confundem e se fundem. Almejamos a utopia do desenvolvimento (futuro), contudo sobrevivemos na atualidade, nos dizeres de Douglass North, "com reduzida mobilidade social, associada a um elevado grau de rigidez institucional, o que contribui para a sustentação de elites desprovidas de interesse econômico voltado à produção material e à inovação tecnológica" (presente), uma consequência direta dos valores transplantados da cultura personalista de Portugal (nossa antiga metrópole) e da dificuldade que o povo brasileiro teve de obter a coesão social (passado).

Em suma, Ão mostra a capacidade investigativa, criativa e técnica de Tunga, um artista plástico poético, habituado a flutuar entre diversos saberes, caso do intercâmbio entre o empirismo da construção de uma galeria subterrânea (Ciência) com a literatura das singularidades das memórias-psicanalíticas humanas (Arte). Tal fusão, arte-ciência, gerou, segundo Octávio Ianni, uma nova forma de autoconsciência: o túnel deixou de ser uma obra de engenharia para se tornar uma prisão criada pela nossa própria mente, onde inexiste o começo tampouco a saída para os problemas; uma clausura temporal-espacial.

Edição    Filipe Dal'Bó e Samy Dana

Samuel

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.