A guerra civil de Hans Magnus Enzensberger
Por Bernardo Burque de Hollanda
Publicado em português há exatos 20 anos, com a tradução sempre abalizada de Sérgio Flaksman, o livro Guerra civil (Companhia das Letras: 1995), de Hans Magnus Enzensberger, aborda um fenômeno que continua a assolar não só a Europa, como diversos quadrantes do globo na atualidade. Trata-se da forma original de todos os conflitos coletivos, uma guerra civil que o pensador alemão qualifica de molecular, pois não é mais exclusivo às massas.
Na guerra civil, o ódio penetrou em cada poro da vida cotidiana e disseminou-se em todas as direções, sob as mais variadas formas. O terror é a norma, ele está em toda a parte. É a luta de todos contra todos. Nela, não se põe em jogo nenhum ideal, nenhum projeto, nenhuma convicção.
Em seu bojo, destilam-se valores como a desilusão aniquiladora, a perda da crença no ser humano e a masculinidade chauvinista. Esta última confunde honra com covardia. O cenário constitui afinal um verdadeiro obstáculo à consecução regulamentar de arbitragem do direito internacional. Estamos diante de uma guerra travada em pequenas dimensões, de dentro para fora, desencadeada por uma minoria que, não obstante, se esparge por múltiplas regiões do planeta.
Ao contrário das clássicas guerras internacionais ocorridas durante o século XX, mobilizadoras de exércitos dos Estados-nação e de suas populações civis para conflitos além-fronteiras, a guerra civil molecular caracteriza-se por uma luta fratricida interna em cada país. Ela é capaz de sediciar grupos, gangues, milícias e bandos armados beligerantes no seio da sociedade, que operam segundo seus próprios desígnios.
Com o ocaso da Guerra Fria e com o fim da estrutura bipolar que moldava o mundo, o panorama internacional desintegrou-se em uma nova (des)ordem mundial. Já não grassa uma visão de mundo, tampouco há convicções verdadeiras: tudo deriva de um ódio irracional.
Segundo Enzensberger, o término de ideologias hegemônicas fez eclodir guerras civis que, em meados dos anos 1990, atingiam a marca de pelo menos quarentas casos de grande gravidade em âmbito global. Ainda que algumas delas viessem travestidas de vernizes político-ideológicos, já não apresentavam qualquer subserviência programática à esquerda ou à direita.
O espectro mapeado vai desde guerrilhas, práticas terroristas, movimentos regional-separatistas até insurgências em guetos e polvorosa de hordas e turbas nas periferias das grandes metrópoles mundiais. A guerra molecular instila-se tanto no modo de ser urbano-espetacular, em que a televisão é sua autoridade moral, quanto nos cantões inóspitos e desconhecidos do mundo. O inimigo é o vizinho, mas o inimigo é também o que está além-fronteiras.
Tal guerra potencializa a agressividade ao próximo, a intolerância para com o vizinho, a indisposição com o diferente e o desconhecido, sem que se evidencie qualquer fundamento consequente ou racional. O etos violento entranha-se nos poros da sociedade hodierna, canalizando a destruição e o estranho prazer autodestrutivo.
O contingente juvenil é atraído e levado de roldão nesse processo. Ele adere com facilidade aos apelos da depredação, aos vícios de toda sorte de consumo e, sobretudo, à banalização de atos cruéis e mortais: "a agressão não é apenas dirigida ao outro, mas também à vida desprezível que se leva".
Destituídos de passado e futuro, resta aos jovens o presente. E este presente é esbanjado pela força física, pelos produtos ostentatórios, pelos gestos e símbolos agressivos. Numa palavra, pela repulsa a tudo que venha da esfera pública – praças de bairro, escolas populares, muros pintados, paredes limpas, banheiros de bares, todo tipo de logradouro. Os perdedores – marginalizados, subempregados e desassistidos –, desprezam a união e trabalham pela mútua destruição.
Mais adiante, considerando o crescimento populacional, o Autor acrescenta: "É como se o valor atribuído à própria vida diminuísse e à dos outros na proporção em que aumenta o número dos habitantes". Está-se em face, portanto, da transformação radical do modo de convivência nas cidades, com a emergência do contrabando, da criminalidade e do tráfico, vis-à-vis a retração do Estado e da justiça.
O que se segue, bem o sabemos – apartheid social, muros excludentes, arames farpados, confinamento sob a égide dos panópticos tecnológicos, conformação da indústria da segurança, terceirização do crime, com guarda-costas e capangas de toda a espécie. A violência é o seu corolário, desejo de chocar o outro, expressão mais impiedosa.
Nesse sentido, a guerra civil molecular revelada nua e crua por Hans Magnus é, a um só tempo, imperceptível e onipresente no cotidiano. Ela põe afinal em xeque a própria humanidade no esforço mais hercúleo, mais utópico, mais longevo de que se tem notícia. Falo da paz universal, tal como a preconizou, séculos atrás, o filósofo Immanuel Kant (1724-1804).
1. À guisa de finalização, apresento os 12 tópicos constituintes do livro do autor germânico:2. Exceção Monstruosa, Regra Monstruosa;3. Velhas Dívidas, Novas Massas;4. A Guerra Civil Molecular, a Perda de Convicção;5. Abnegação, Autodestruição;6. Becos e Labirintos da Interpretação;7. Indícios e Auto Experimentação;8. Inocência Tardia, Campos Minados;9. A Cultura do Ódio, a Mídia em Transe;10. Tenda dos Milagres, Complexo de Culpa;11. Pedidos de Socorro, Formas de Tutela;12. Prioridades e Antinomias;13. Milagres Temporários;Edição Filipe Dal'Bó e Samy Dana
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