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GV CULT - Criatividade e Cultura

O chefe da máfia: Breve história de um francês em Minas Gerais

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27/01/2015 09h34

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

 

Crédito: https://mafiaazulbelovale.wordpress.com (editado)

A residência de meu entrevistado não é um lugar qualquer. Chega-se ao bairro Mangabeiras, em Belo Horizonte, como um alpinista ao topo de uma colina. Embora conduzido por um carro potente e confortável, sente-se ofegante com a íngreme subida que se apresenta à frente. A pista inclinada leva às culminâncias da Avenida Afonso Pena, até o ponto em que se divisa uma espécie de rotatória. Olhando-se à esquerda, está-se em face de um mirante, o mesmo de onde o Papa João Paulo II, nos idos de 1980, abençoou a cidade das alterosas.

Ao sopé da Serra do Curral, pequenas ruas entrecortam o nobre bairro, outrora residência de verão dos governadores mineiros. Como não procuro vestígios de Juscelino, de Magalhães Pinto, nem tampouco do falecido pontífice polonês, eu e meu condutor continuamos a ziguezaguear em busca da casa de Jean Marc. Com o céu limpo e o sol ameno, tudo concorre para a sensação de um edênico domingo matinal, ainda que placas de alerta da polícia e avisos de "cão feroz" insinuem o perigo nas cercanias do meu destino.

Alcanço enfim a Rua Comendador Viana e a casa do homem que pretendo entrevistar. A voz do interfone denuncia, pelo acento, a nacionalidade do entrevistado. A sua presença física só faz confirmar a suspeita sonora. Vejo aproximar-se Jean Marc, que desce as escadas com andar cambaleante. Enverga a camisa da Seleção Francesa de futebol. Os andares da escadaria levam a um alpendre e este, aos cômodos da casa. Guardadas as devidas proporções, é como se estivesse entrando em um cenário arquitetônico descrito por Gilberto Freyre, em Casa-Grande & senzala.

Recosto-me em uma das poltronas da sala. Neste entretempo, passam pelo corredor a mulher, o sogro e a filha – a mignonne Julie. Tiro da mochila o gravador, pressiono o botão de rec e, tão logo a fita magnética começa a rodar, começo a desenrolar a entrevista, com o fio das minhas indagações.

A primeira pergunta é sempre a mais difícil. Qualquer deslize pode comprometer todo o resto: "por que o senhor escolheu o Cruzeiro, e não o Atlético, para torcer?". Deslocara-me do Rio de Janeiro com esta questão na cabeça. A interrogação justifica-se pelo próprio símbolo estampado na blusa com que me recebeu o entrevistado em sua residência. Afinal, por que cargas d'água o coq gaulês não inspirou Jean Marc a adotar o galo atleticano, "forte e vingador", como diz seu hino?

Jean Marc tergiversa, não responde de imediato. Nascido em 1962, ultrapassou os cinquenta anos de idade, mais da metade passados no Brasil. Em realidade, não é natural da França, como indica seu maillot azul, mas de cidade ao norte da península itálica, a industrial Turim. A mãe, uma artista plástica italiana, se radicou nos arredores de Paris, aonde foi viver em companhia do marido, um engenheiro francês, especializado em energia nuclear, originário da provinciana Poitiers, no centro-oeste do Hexágono.

Ao contrário do que costuma acontecer, não foi a família quem incutiu no filho o gosto pelo futebol. Nem o pai nem o irmão mais velho apreciavam tal modalidade esportiva. Por determinação paterna, foi proibido de assistir às partidas da Juventus pela TV. O pai o obrigou ainda a cursar letras na universidade de Paris X, em Nanterre, o que lhe valeu uma inicial antipatia pela literatura.

Crescido em Ville d'Avray, uma pacata banlieue a nove quilômetros de Paris, sua adoração futebolística fê-lo frequentar o Parque dos Príncipes, nome do estádio do clube Paris Saint-Germain, situado no 16e arrondissement, o chique bairro parisiense.

Assistia aos jogos na parte das arquibancadas em que ficavam os torcedores mais agitados. Era o setor de Boulogne, tribuna mais barata que goza a reputação de receber os mais violentos, os hooligans à francesa, com membros skinheads e com simpatizantes políticos à direita.

Certa vez, com o frio rascante do inverno europeu, Jean Marc recusou-se a sentar na cadeira. Acabou apanhando de um grupo que estava atrás dele. Como "a vingança é um prato que se come frio", esperou mais três partidas, reuniu os comparsas e revidou a turma que o agredira, com toda sorte de golpes, socos e pontapés.

Passo à segunda pergunta, curioso: "E por que decidiu vir morar no Brasil?" "– Foi em meados dos anos 1980. O Brasil é o país do carnaval, do futebol e das mulheres. Tinha vinte e três anos e queria desligar-me dos meus pais. Uma prima morava em Belo Horizonte, trabalhava na diretoria da FIAT, em Betim, e havia possibilidade de eu trabalhar na empresa. Fui morar na casa dela".

Pouco tempo depois de aqui chegado, Jean Marc teve um desentendimento com a prima e foi morar sozinho. Enquanto fazia biscates, cursava Letras na UFMG, uma forma de dominar mais rapidamente o português. Deu certo. Para sobreviver, começou a dar aulas particulares de francês. Falante e expansivo, encontrou a profissão certa. Hoje, leciona na única filial da Aliança Francesa de Belo Horizonte.

Embora adore dar aulas, não é como professor que Jean Marc é mais conhecido. Francês é o seu nome de guerra nas arquibancadas do Mineirão. Em particular, à direita das cabines de rádio, atrás do gol, onde se encontra localizada a mais eletrizante torcida organizada do Cruzeiro, a Máfia Azul, uma associação que anuncia ter mais oitenta mil associados, espalhados em 170 filiais, quatro delas no exterior.

Crédito: http://mafiaazul.com.br

Aproveito o gancho para lançar a terceira pergunta a Francês, intrigado: "E como você se tornou líder dessa torcida?". A resposta beira a banalidade. Tão logo chegou a Belo Horizonte, por volta de 1986, foi assistir sozinho a uma partida. Havia várias torcidas – a Cru-Chopp, a Máquina Cruzeirense, a Fanáti-Cruz, a Torcida Jovem. A Máfia Azul era uma delas. Fundada em 1977, era então um minúsculo grupo, insignificante. Existia apenas graças a uma pequena faixa dependurada na linha limítrofe da separação policial com a torcida do Atlético.

O núcleo original se reunia na Floresta, tradicional bairro belo-horizontino. De maneira um tanto casual, Jean Marc conheceu uns rapazes da tal máfia na arquibancada. Fez amizade e afeiçoou-se ao grupúsculo "mafioso". Daí em diante, bolou a primeira bandeira, idealizou a camisa – inspirada na do Paris Saint-Germain – e começou a ir a todos os jogos do Cruzeiro, inclusive os fora da cidade. A liderança foi assim, segundo ele, quase natural: pertenceu durante anos à diretoria e, entre 2000 e 2006, presidiu a torcida.

Incontinenti, lanço a quarta pergunta: "E das brigas, você participa?". Quanto a isto, Francês é bem sincero. Não nega a existência delas e uma cicatriz no rosto é a melhor forma de comprová-las. Perdeu a conta das vezes em que se meteu em confusão e outras tantas em que acabou preso. Certa vez, os torcedores do Vasco chegaram em caravana com onze ônibus no Mineirão. Era cedo e ainda não havia policiamento. Os vascaínos da Força Jovem correram em direção dos cruzeirenses no anel superior do estádio. Um negro forte, alto e musculoso encarou-o. Enquanto este fazia firulas de capoeira e simulava rabos de arraia em sua frente, Francês desferiu-lhe um golpe nos testículos, deu uma testada à Zidane e saiu correndo em disparada.

Jean Marc reflete e afirma, com sempiterna convicção: "Torcida organizada tinha que ser extinta quando surgiu. As autoridades não fizeram nada na época e agora é isso que está aí. Não adianta proibir, tem que estabelecer regras, dar exemplo com punições. Eu faço a minha parte, crio projetos sociais, promovo doação de sangue, tento reforçar o sentido positivo da torcida. A Máfia ajuda comunidades carentes, tem ações beneficentes. Eu fui a uma creche, dei trezentos brinquedos, pipoca, balão, monte de coisa e tudo o mais. Mas a impressa não divulga nada de bom, só diz que é coisa de vagabundo.".

Francês tem prazer em falar de suas invencionices nas arquibancadas. Em especial, as faixas de provocação aos adversários, no caso, aos atleticanos. Conta que certa vez confeccionou uma imensa bandeira e desfraldou-a na divisa do Mineirão, rente à área atleticana, num território do estádio batizado popularmente de "Contestado". A bandeira desfraldada trazia o sinal de uma seta e a inscrição apontada à torcida do Atlético: "Canil a 50 Metros".

Afora as camisas e as bandeiras de gozação, importou costumes das torcidas europeias, levou outras tantas daqui para lá. Graças à internet, da qual é adicto, está em permanente contato com os torcedores ultras, trocando informações e experiências, atualizando-se, ensinando e aprendendo com seus conterrâneos gauleses.

Desfio mais um rosário de perguntas, que adentram os bastidores das torcidas organizadas, no Brasil e no mundo. Sem que perceba, a formalidade da entrevista resvala para uma conversa informal. Passadas duas horas de gravação, o papo finda. Desligo o gravador. Em retribuição, ofereço a Jean Marc um souvenir.

Trata-se da camisa de uma torcida francesa: nela, vê-se, ao centro, o desenho de um buldogue, esganiçado e raivoso, com uma coleira pontiaguda metálica. Ao fundo, emoldurando o cão hostil, drapeja a bandeira tricolor, com as cores revolucionárias (o vermelho, o azul e o branco), acompanhada do acrônimo da torcida: KOB (Kop of Boulogne).

Os olhos de Jean Marc brilham, como se lhe tivesse dado uma relíquia. Em contrapartida, o mesmo pede-me para acompanhá-lo ao andar acima. Subimos ao segundo piso de sua casa e entramos em um dos aposentos. Este mais parece uma fábrica de tecidos. Camisas, shorts, agasalhos e materiais promocionais da sua torcida aparecem estendidos, nos mais diferentes formatos, quase todos em coloração azul e branca.

Francês tira do cabide uma blusa e oferta-me, à guisa de presente. Na camisa alvi-anil, veem-se, à frente, três raposas estilizadas, dispostas simetricamente em forma de triângulo, envoltas num círculo azulado. Nas costas, o astuto espécime reaparece, mas não é o focinho da raposa o que mais chama a atenção. O animal avulta pela força intimidadora, tem bíceps e músculos hipertrofiados, qual lutador de MMA. Abaixo do desenho, leio a legenda, cujo dizer soa enigmático para mim: MURO DE CONCRETO, RUIM DE DERRUBAR.

Edição    Filipe Dal'Bó e Samy Dana

BernardoBuarque

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.