Todos Temos
Por Gabriel Di Pietro De Camillo
"Quem por suas próprias mãos meteu o inimigo em casa, não venha depois queixar-se, avisado estava e não faz caso"
José Saramago in "O Homem Duplicado"A terra, que sorte a dela, cercada da água que refresca, salga e banha. Nós, pobres de nós, somos cercados de problemas. Há vezes em que não nos deixam sequer passar pela porta de casa. Quando resolvem se instalar no peito, causam uma calvície precoce em renomados cardiologistas, tamanha complicação. Não há muito tempo, questão de semanas, acredito, um daqueles problemas encontrou a chave de meu apartamento.
Logo pela manhã notei algo excepcional. O lado esquerdo da cama, próximo à parede, vazio de costume, estava amarfanhado. Ora, essas minhas plácidas dormidelas não podem ter sido. Obra do divino, lembro-me de ter pensado. O sol já me abrasava o rosto. Recebia um feixe de luz que se convidava a entrar pela fresta. Quente, levantei. Esvaziada a xícara de café, meti as mãos nos bolsos da calça e me dei pela ausência da chave de casa. Cacete, onde é que as fui deixar. No centro da sala, buscava seu último paradeiro. Lembrei-me do aniversário na fazenda, meus seis ou sete anos, o granulado do bolo e o rosto daquele parente distante. À memória, veio-me o primeiro beijo, as mão suadas naquela delgada cintura, a desordem pueril das línguas que mal sabem o que fazem, assim como quem as governa. Mesmo com os pés no tapete e de meias, senti um frio súbito subir minhas calças. A corrente de ar metia-se pela porta entreaberta. Impossível. Senhor, atrasa-se para os deveres. Recostada à parede, estava uma figura grave, vasta em tamanho, suficiente para me travar a saída. Senhor, apresse-se, tem coisas a fazer, exclamou. Estupefato, perguntei, Como é que entrou em minha casa, deixei as chaves para fora, há de ter sido isso. Onde estão os bons modos, replicou a figura, endireitando-se, bons dias ao senhor também, presumo que saiba quem sou, visto que não questionou. Não, não sei, é um invasor, isso sim, replico firme, diga-me logo quem é e que faz aqui, caso contrário acionarei a polícia.
Pudessem as entidades policiais resolver esse tipo de situação e viveríamos todos uns duzentos anos, tamanha paz com a qual nos acostumaríamos. Bastava discar três números e lá vai. Meu caro, sou o Seu Maior Problema, deixei os meus pequenos em casa hoje, aqueles que você apadrinhou, e digo-lhe que crescem, e rápido. Maldito, como é que me encontrou a casa, de onde tirou as chaves, pergunto ao Maior Problema. Ah, foi fácil, sua rotina, sei-a de cabo a rabo, as chaves encontrei-as em cima da mesa, ao lado da carteira.
Ainda sem entender, continuei com perguntas. Que lhe devo afinal, Ora, isso é simples, apenas uma resolução, o velho decifra-me ou te devoro. Sentindo o ressoar dos ponteiros ecoar pelo apartamento, como quem diz corre que se atrasa, forço uma saída, pelas beiradas. Frustrado, rogo, Deixe-me ir, acertamos os pormenores da situação quando estiver de volta. Encaminhei-me ao trabalho, o trânsito já engolia as ruas e os pedestres se digladiavam por espaço no passeio. A camisa, simbioticamente, grudava-se em mim pelo suor. Era quarta-feira, dia de almoçar com o colega da mesa ao lado. Durante a refeição, convido-o para uma cerveja, um ou dois goles, após o trabalho. As tarefas, eram-me poucas. Realizei-as com calma, atrasando o retorno à minha casa.
À mesa do bar, falávamos sobre tudo, eu, o colega da mesa ao lado, os das mesas diagonais, transversais, diferentes repartições. Brevemente, esquecia-me de que meu maior problema esperava-me com as pernas cruzadas sentado à cadeira. Sorte que se esquecera de levar os pequenos. Com o nó da gravata já frouxo, a língua docemente adormecida pelo álcool, comunico aos presentes na mesa que precisava ir, meu maior problema estava em casa e era hora de resolvê-lo, senão me devorava, palavras suas. Não, não, era cedo, era necessário esticar mais. Deu-me nas idéias ligar para uma antiga namorada, reacender uma chama nunca faz mal, é só assoprar quando formos saindo.
Abriu a porta, ainda sonolenta. O protocolo sugeria uma conversa, boas noites, desculpe-me o inconveniente da hora. Pulamos, segue o que aconteceu. Não me convidas para entrar, perguntei enquanto observava seu rosto apoiado na porta entreaberta, já notando a agradável ausência de qualquer peça que cobrisse suas pernas. Abençoadas sejam essas mulheres que fazem da camiseta um curto vestido, têm seu lugar garantido nos céus, dormem na minha nuvem se apetecer. E é preciso, replica ao passo que me abre o caminho com uma timidez proposital, aquela em que os lábios são mordidos, os cantos e beiradas precisamente, e todo o resto das coisas inventadas fica para o lado de fora, esvai-se, não se pode dividir atenção com o divino. Quando peguei em sua cintura, até hoje delgada, lembrei-me daquele primeiro beijo, que não era este. Este nosso beijo há tempos não é o primeiro. Ainda que conhecedor dos procedimentos, suaram-me as mãos.
Cessamos o beijo de número x, já ia despido de boa parte do traje, faltava-me a calça. Frio, um vento sofregamente frio subia pelas minhas pernas, e só pelas minhas calças entrava, eu era o único a vesti-las no centro da sala. O espanto se apodera do rosto da minha antiga namorada, que vocifera, Quem é você e como entrou aqui. Olho para trás, a porta novamente entreaberta explicava o gelado que passeou nas minhas calças. De pernas cruzadas, sentado à cadeira, Seu Maior Problema diz, Se pensa que pode fugir do seu problema, o maior deles, engana-se, cumpra-se o provérbio, devoro-te. Antes que eu pudesse gritar que deus nos acudisse, meu rosto já rogava por ajuda quando minha antiga namorada, amparada por uma grave figura, vasta em tamanho, suficiente para impedir qualquer socorro, disse, A cada um seus próprios problemas.
Texto publicado no Blog Tijolo <http://www.tijoloblog.com/>
Edição Filipe Dal'Bó e Samy Dana

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