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GV CULT - Criatividade e Cultura

Leonardo Da Vinci: a invenção da natureza ou a natureza da invenção?

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13/01/2015 06h28

Por    Bernardo Buarque de Hollanda.

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A exposição "Leonardo Da Vinci: a natureza da invenção" está em cartaz no espaço SESI, na Avenida Paulista, desde novembro de 2014, e aí ficará até maio deste ano. Desde o início, vem arrebatando, por assim dizer, multidões, despertando grande interesse e atraindo um numeroso público visitante, dos mais variados perfis e faixas etárias.

Para além da bela concepção expográfica que justifica o seu sucesso, cabe perguntar: por que o Renascimento, em geral, e Da Vinci, em particular, suscitam até os dias de hoje tamanho apelo? Qual o motivo de tanta curiosidade frente à tão remota época e a tão distante personagem?

Não temos uma resposta pronta para esse afã em torno de um período histórico e de uma figura singular como Da Vinci. Sabemos que ele foi capaz de dar "asas à imaginação", de "transformar o movimento", de "preparar a guerra", de "desenhar a partir de organismos vivos", de "imaginar o voo", de "aprimorar a manufatura" e, last but not least, de "unificar o saber", como vem dito nos tópicos do prospecto da exposição.

Mas sem dúvida se trata de uma questão indiciária, corroborada por nosso próprio interesse pessoal no artista-engenheiro e no seu notável período, haja vista a constância reiterada com que viemos tratando do assunto nesta coluna desde o segundo semestre de 2014.

Em vários de nossos textos, procuramos apresentar o debate historiográfico em torno do Renascimento e do Humanismo, conceitos empregados ora como ruptura ora como continuidade em relação ao passado; ora como movimento artístico-cultural revitalizador da cultura humanística da Antiguidade ora como período histórico caracterizador de uma nova era na História da Europa moderna ocidental, entre os séculos XIV e XVI.

Em um primeiro momento, apresentamos o contexto histórico em que floresceu a Renascença italiana, com suas emergentes cidades-Estado e com uma dinâmica artística, econômica e política propícia à manifestação de uma nova concepção do ser humano, tal como propôs o historiador suíço Jacob Burckhardt no século XIX.

Em seguida, matizamos outros quadros regionais europeus, como a região de Flandres, dotada de uma certa autonomia frente às repúblicas italianas, mostrando-se ainda como boa parte das províncias europeias permaneceram à margem do fenômeno cultural renascentista até o século XVI.

Esse último aspecto permitiu-nos questionar a ideia de simples ruptura em relação ao passado medieval, com a demonstração de que para a maioria da população a vida social permaneceu ligada aos valores da Idade Média e, mesmo do ponto de vista artístico-arquitetônico, a arte gótica continuou a ter um peso de destaque na paisagem local, mesmo durante o Cinquecento europeu.

Na coluna de hoje, quero tratar do "homem renascentista" à luz de Eugênio Garin (1909-2004), historiador e filósofo da Universidade de Florença. O autor apresenta uma tese central: há uma sobrevalorização do papel do príncipe renascentista, sendo as mudanças ocorridas nesse período mais superficiais do que essenciais.

O historiador italiano se concentra para tanto nos principados, nos regimes e nas monarquias senhoriais e despóticas. O senhor do Renascimento é um soberano independente, como na tradição clássica, ao contrário do sentido feudal do príncipe até então, encerrado numa estrutura piramidal de sociedade.

Garin defende a ideia de que era uso costumeiro o emprego da força física para derrubar príncipes, tiranos e monarcas do poder. As brigas familiares eram muitas vezes razões que estavam na origem das disputas pela sucessão de tronos e terminavam em assassinatos, golpes, saques, invasões e destronamentos.

Governantes e dinastias digladiavam pela posse de terras e de heranças. Mesmo internamente, em nível familiar, isto ocorria. Súditos também eram alvos, havia homicídios, regicídios e tiranocídios. A crueldade na conquista e na manutenção do poder não estava longe desse processo, de sorte que o argumento central do autor é a ausência de mudança substantiva do ambiente medieval para o ambiente renascentista.

Senhores da Itália eram dotados de temperamento guerreiro. Com narrativas melodramáticas, relatavam viragens da sorte e crueldades do destino. Era um período de fascínio sobre artistas e escritores, que exageram nos traços, o que exige cautela quanto à imaginação "romântica", já florescente.

A moralidade tradicional se coadunava ao pensamento político: magnificência, sabedoria, justiça e força militar eram seus atributos. Ao lado da obscuridade e da violência, emerge a reputação do príncipe no bom gosto e na civilização da corte no Renascimento, lugar para o cultivo da civilidade, da sensibilidade, da humanidade, com suas biografias e autobiografias.

Em síntese, diz Garin:

"Não há muitas provas de que a moralidade do príncipe do Renascimento, as suas atitudes perante a religião ou a utilização da violência como instrumento para conquistar e conservar o poder fossem significativamente diferentes dos seus antecessores medievais no resto da Europa."

Entre muitas outras contribuições históricas e filosóficas, a obra de Garin é uma tentativa de demonstração de que, na Itália do século XV, a ideia de soberania do príncipe nos moldes clássicos, como a de César Bórgia ou a milanesa Casa de Sforza, foi sobrevalorizada, em detrimento de uma percepção que reconhecia uma dependência destes para com a Igreja e o Imperador, o que o fazia caudatário ainda de um sistema hierárquico fechado.

São quatro os "mandamentos", inspirados em Garin, para o historiador que queira mobilizar o corpus de história da arte no Renascimento:

1. Para saber analisar uma obra de arte, é preciso reconstituir a obra no fluxo do processo produtivo, técnico, material e humano. É necessário ser capaz de identificar os usos aos quais se destina, quais sejam: práticos, políticos, ideológicos, didáticos, estéticos.

2. É incontornável fazer uma contextualização externa e uma análise de "conteúdo" iconográfico, bem como conhecer a fonte histórica que o originou, colocando a obra no quadro social de sua produção, identificando a intenção do autor, a ação do mecenas e a recepção do público.

3. A fonte iconográfica pode ser uma forma de suprir lacunas arquivísticas de documentação escrita.

4. A história da arte representa um elemento específico do "horizonte mental" e "cultural" de uma época.

Para finalizar a coluna de hoje, trazemos sob a forma de tópicos algumas informações adicionais, para fins didáticos de contextualização do que foi mencionado acima:

– Contexto econômico: desenvolvimento do comércio internacional, sobretudo no Báltico e no Mar do Norte; novas técnicas comerciais e bancárias, junto à indústria e à agricultura, aliam-se à riqueza das artes e ao desenvolvimento cultural; as crises do século XIV resultam em conflitos exteriores, em querelas de sucessão e na transformação da guerra; nas cidades independentes, as rivalidades econômicas e comerciais se apoiam sobre rivalidades de clãs.

Contexto político: opera-se uma evolução das estruturas sociais e políticas – da oligarquia ao principado; a centralização administrativa das monarquias dá-se em meio aos conflitos internos e à conspiração na "Itália"; constatam-se revoltas nos estados monárquicos e nos principados alemães; conspirações no século XV italiano aguçam o desenvolvimento de um "sentimento nacional"; instauram-se conflitos entre os poderes laicos e o papado; as instituições culturais despontam por meio de escolas e universidades; as bibliotecas assistem a uma inflexão, com a passagem dos manuscritos à impressão.

– Contexto humanístico italiano, francês e alemão: o humanismo alemão se caracteriza pelo gosto do latim elegante, pelo comentário e pela tradução das obras antigas, pela oposição à retórica escolástica, enfim, pela exaltação do sentimento nacional que, como na França, se manifestara no desejo de rivalizar com a península itálica; a reflexão política dos humanistas implica em conjurações, em revoltas e em lutas contra os tiranos; os pioneiros do humanismo atuam em nova esfera social, através de secretários reais, secretários pontífices, funcionários de chancelaria e secretários de embaixada; são eles os emissários da centralização do poder; o Papa João XXII, instalado em Avinhão, mobiliza chancelaria, diplomacia e organização financeira da coleta para a cristandade; expande-se o direito canônico e civil.

– Contexto urbano: as guildas desenvolvem-se como corporações artesanais ou de ofício; a liga hanseática permite a aliança de cidades mercantis que mantiveram monopólio comercial, após as instabilidades provocadas, entre outras, pela Peste Negra de 1348, por diversos éditos – ordens de autoridade superior ou judicial –, pela Revolta de Ciompi (1378) e por revoltas camponesas e populares no correr do século XIV; no desenvolvimento das cidades, destacam-se nomes como Etienne Marcel (1302-1358), mercador parisiense, Eduardo III (1313-1377), Philipe VI, o Belo (1293-1350) e Bonifácio VIII (1235-1303); cidades têxteis e portuárias florescem e dinamizam o comércio de feiras como a de Champagne; em Flandres, rotas comerciais se abrem em meio à indústria da construção naval; amplia-se na Europa o acesso a cereais, frutas, legumes e carnes.

– Contexto histórico europeu: sucede a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), série de conflitos armados intermitentes entre França e Inglaterra; reinados absolutos de Inglaterra, França, Castela e Aragão; na "Alemanha", território federal do Imperador, príncipes dão autonomia às cidades; Jacquerie: insurreição camponesa no norte da França, em 1358; Joana D'Arc (1412-1431) vivencia seu drama crematório; prorrompem casamentos dinásticos e assiste-se à "querela das investiduras"; Papa Clemente V (1264-1314) e a Ordem dos Cavaleiros Templários; Erasmo: escreve sem separar o Evangelho da paz;

– Contexto histórico italiano: na península itálica, a rivalidade entre o papa e o Imperador permite a formação de pequenos Estados; substituição da condição feudal das grandes famílias por uma oligarquia financeira; Veneza e Florença (cidades livres) x Milão (Visconti e Sforza); grandes famílias e companhias entram em lutas intestinas pelo poder; de um lado, os Guelfos, partidários do papa, de outro os Guibelinos, partidários do Império; exílio de Danti Alighieri; lutas de clãs entre famílias rivais, sendo uma das mais afamadas a ocorrida em Roma, opondo Orsini a Colonna; na origem dos conflitos, estão as crises de sucessão do poder e suas instabilidades; técnicas e instrumentos de guerra são criados por invenção de Da Vinci; mercenários passam da defesa de um reinado a outro; avulta o condottiero, senhor feudal que controlava uma milícia; sentimento nacional substitui o elo pessoal que, no sistema feudal, unia servos, senhores e suseranos. Leão X: papa e autêntico príncipe do Renascimento, pertencente à família Médici.

– Contexto universitário: ensino superior se expande das escolas, das catedrais e dos monastérios às Universidades; desenvolvimento das faculdades de Artes conduz à separação acentuada entre razão e fé; Direito e medicina tornam-se mais e mais importantes; em Oxford e Paris grassa o ockhamismo, referência a Guilherme de Ockham (1285-1347), teólogo escolástico inglês, da escola nominalista; no século XV, a França cria nove universidades; invenção da imprensa possibilita a separação dos caracteres e reprodução dos textos mais longos; desenvolvimento das universidades, com ensino fundado sobre textos teológicos ou filosóficos.

Edição    Filipe Dal'Bó e Samy Dana.

BernardoBuarque

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.