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GV CULT - Criatividade e Cultura

Outono da Idade Média ou Primavera dos Tempos Modernos?

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06/12/2014 09h00

Por Bernardo Buarque de Hollanda.

No livro que dá título à coluna de hoje, publicado em português no ano de 1988 e editado pela Martins Fontes, o historiador francês Philippe Wolff (1913-2001) sustenta a tese de que o progresso e a evolução material da humanidade não teriam sido possíveis sem uma profunda transformação intelectual. No entanto, esta mudança provocada pelo pensamento humano não se faz sem conflitos interiores, sem interrogações e sem dúvidas.

Em termos teóricos, o ponto de partida é polêmico, pois contém uma visão não-marxista nem economicista, segundo a qual o espírito humano e suas ideias são derivações superestruturais, reflexos das relações materiais de existência. Por outro lado, ao invés de uma visão harmônica do Renascimento, na qual as invenções ocorreriam sem conflitos, o autor salienta como esse homem em transição vivencia essas transformações de maneira angustiada e dolorosa.

São os dilemas intelectuais e morais que o autor se preocupa em examinar. Trata-se de um despertar intelectual proposto por Wolff. Como, por exemplo, no capítulo 11, intitulado Rumo a uma nova revolução do espírito, em que se descrevem as trajetórias de vida de Leon Batista Alberti (1404-1472) e de Leonardo da Vinci (1452-1519).

Filho bastardo de uma família de cambistas de Florença, Alberti foi criado no exílio em Gênova e Veneza. Teve uma instrução cuidadosa nas letras e nas artes, vindo a se formar em direito em Bolonha, locus, diga-se de passagem, da mais antiga universidade europeia, criada no século XII, a que se seguiram Sorbonne, Oxford e Coimbra.

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Com a morte de seu pai, a família quis que ele aderisse aos negócios, mas ele preferiu continuar os estudos à noite, trabalhando durante o dia para sobreviver. Formou-se em direito canônico em 1428. Nesse período de formação, escreveu obras poéticas em latim e italiano, versando sobre o amor, a liberdade e a mulher, inspirado no poeta latino Ovídio, autor de Arte de amar.

Apesar da distância com o mundo religioso, Alberti serviu o cardeal e até o papa, o que lhe possibilitou ir a Roma e à Alemanha. Com a expulsão do papa de Roma, Alberti acompanha-o a Florença, terra de sua família, onde entra em contato com grandes artistas, como Brunelleschi e Donatello. Deste contato, escreve obras sobre escultura e pintura, para as quais recomenda o estudo da anatomia do corpo humano e das leis da perspectiva na representação de volumes e pinturas.

Com a volta de Eugênio IV ao centro do poder romano, Alberti publicou uma obra de defesa do emprego da língua vulgar, embora não tenha abandonado a língua culta, o latim. Quando um amigo torna-se papa, ele passa a se dedicar à arquitetura, com livro e com atividades práticas como a construção de um aqueduto e com a reforma de pontes, igrejas, capelas, palácios e basílicas.

Alberti projetou plantas para essas edificações. Torna-se conhecedor de mecânica e seus conhecimentos matemáticos levam-no a estudos sobre questões de nivelamento do solo. Em 1450, conclui sua obra essencial, em dez volumes, sobre engenharia moderna, que ele aproxima da arte, e sobre os ensinamentos dos antigos. Morreu em Roma dando prosseguimento a seus estudos científicos de óptica e meditações filosóficas.

Ainda que envolto pela religião, o percurso de Alberti denota a dinamização da circulação das ideias, para além do saber religioso. Uma das características do homem renascentista é o cosmopolitismo, é o caráter multifacetado e Alberti parece se coadunar com esse perfil polivalente.

A consideração da arquitetura como uma arte leva à indistinção entre o artista e o artesão, entre o saber teórico e o saber prático, entre a técnica e as humanidades, entre a matemática e o estudo das línguas. Seria a Revolução Industrial que iria colocar estas áreas como antagônicas, de um lado com as ciências aplicadas técnico-científicas, e de outro o saber especulativo e artístico.

Essa ideia de uma suposta unidade quebrada fez muitos estudiosos marxistas, como Walter Benjamin, lamentarem o curso do Ocidente e se referirem um tanto nostalgicamente a uma era, o capitalismo pré-moderno ou o trabalho artesanal em que o homem estava integrado e tinha um sentido de totalidade às suas ações. Trata-se do que hoje chamamos atualmente de especialização.

Por outro lado, são esses homens geniais que passam a escrever poemas em latim vulgar e que contribuem para a fixação das línguas nacionais.

A descrição da trajetória de Leonardo da Vinci é igualmente auspiciosa: nascido próximo a Florença e colocado numa espécie de orfanato, Da Vinci teve a proteção dos Médici, o que lhe permitiu estudar pintura com Botticelli. Com a saída deste de Florença, foi indicado a um príncipe guerreiro de Milão, que o empregou como engenheiro, o que não o impediu de construir catedrais, de pintar retratos, de fazer maquetes e de se dedicar a pesquisas anatômicas.

Com a chegada do rei francês Luís XII, Da Vinci teve uma vida errante por várias cidades, prestando serviços militares na Itália central, com a projeção de armas e naves a César Borgia, chegando a conhecer Maquiavel. Depois, serviu ao rei Francisco I e acabou morrendo na França.

Como sabemos, produziu extraordinários desenhos, tomados pelas tropas de Bonaparte, já no século XIX. Tinha um espantoso conhecimento de anatomia e fez descobertas no estudo da luz e da representação da água. O rigor obstinado aparece em suas obras e pesquisas, na simetria do conjunto entre o centro e as linhas de um quadro, cuja lei nos escapa e que parece à primeira vista misteriosa. Vários projetos de Da Vinci ficaram incompletos, apenas esboçados.

Alberti e Da Vinci são, pois, homens excepcionais. Cabe, entretanto, vinculá-los à economia, o primeiro por ligações com sua família, composta por negociantes, o segundo por sua atividade de engenheiro, que conjuga ciência, arte e pensamento. A estimativa em torno dos homens de negócio das grandes cidades italianas, não apenas os negociantes, mas todos os envolvidos naquela ética, é da ordem de 30 a 40 mil pessoas, cerca de 5 a 10% da população.

É essa minoria que dinamiza a vida urbana, estimulando as aglomerações e ditando o poder político. É ela que impõe sua maneira de agir, viver e pensar. Homens de negócio se sedentarizam, tornando-se homens de gabinete, o que não impede seu estabelecimento de abundantes correspondências.

A vida nas cidades, de todo modo, estimula o gosto pelos estudos, não apenas dos gênios, mas daqueles que buscam a instrução nas escolas e no trabalho. As escolas se apartam cada vez mais da Igreja. Não apenas as mercadorias circulam, mas também as ideias. A curiosidade por notícias aumenta, desejando-se saber informações sobre as famílias governantes, as guerras, as agitações sociais, as oscilações monetárias.

O historiador francês conclui o capítulo falando do gosto pela exatidão e pela representação exata dos homens, expressa na introdução do relógio público que unifica as horas e as datas, em substituição ao tempo da natureza e ao tempo eclesiástico. Não é mais o sol, não é mais o galo, não é mais o sino: é o relógio público quem dita as horas.

O desenvolvimento dos mapas e da cartografia é outro exemplo da evolução desse espírito exato. Qual é a questão interior desse momento? Os homens de negócio, os mecenas e os artistas eram regidos pelo individualismo e pela ética capitalista, com vistas ao lucro e ao bem útil, mas viviam ainda no seio de um mundo cristão, orientados por seu turno sob outros princípios.

Dito isso, chegamos aos seguintes comentários à guisa de encerramento:

1) O provincianismo dos homens de negócio. Mesmo viajantes, eles se fixam nas cidades de destino, mas vivem próximos aos seus conterrâneos e cultivam os hábitos da cidade de origem;

2) O desenvolvimento da cidade vem correlacionado ao desenvolvimento dos negócios, que por sua vez requerem o cálculo. Dinheiro e razão abstrata têm aí uma de suas gêneses;

3) Para não sermos eurocêntricos, não podemos deixar de falar da influência dos árabes no desenvolvimento do cálculo e da representação matemática e da álgebra, com sua etimologia denunciante (alfinete, algodão, almofada…), a alimentar o conhecimento da Escola de Sagres. Em paralelo à sapiência arábica, a geometria euclidiana soma-se à matemática pitagórica.

Finalmente, convém dizer que a revolução comercial-econômica operada desde o início da Baixa Idade Média não seria possível sem uma revolução intelectual, operada no plano das ideias, como argumenta Wolff. Ela teria sido encarnada numa série de crises coletivas, de ordem mental e moral, vivenciadas em âmbito individual, por parte dos artistas que então se destacavam com suas características polivalentes, versáteis e multifacetadas, mas também angustiadas.

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.