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GV CULT - Criatividade e Cultura

Vendo a cultura numa sala para um príncipe renascentista

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25/11/2014 09h00

Por Bernardo Buarque de Hollanda.

À memória do historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014)

O título da coluna de hoje toma de empréstimo o extraordinário capítulo de Randolph Starn, incluído no livro de Lynn Hunt, "A nova história cultural" (São Paulo: Martins Fontes, 1992). O texto faz uma análise em dupla pegada, história cultural e história da arte, através de uma anatomia das pinturas presentes em uma sala de um príncipe renascentista. O caso analisado situa-se em Mântua, a cidade renascentista das águas, em pleno século XV.

Starn é historiador na Universidade da Califórnia, em Berkeley, filiado à tendência pós-estruturalista, tão cara ao ambiente universitário norte-americano de então. O capítulo foi escrito na década de 1980 e é parte integrante de um estudo sobre arte e política na Itália medieval e renascentista. Para o autor, arte é codificação de uma mensagem política e sua imitação pode-se operar no plano da literatura e das artes visuais.

Logo na introdução, o professor estadunidense observa os quadros e a decoração nas salas de recepção sobreviventes do período da Itália medieval e renascentista. Dispostos naquele cenário, arte e política têm três séculos de ligação. Primeiramente nas repúblicas cívicas do século XIV; depois, nas cortes principescas do século XV; e, por fim, nos estados triunfalistas do século XVI.

As questões colocadas pelo autor são de antemão as seguintes: como os regimes de poder correspondem a esferas representativas de prática simbólica? De que maneira estilos artísticos codificam mensagens políticas? A arte se entrosa com seu contexto, pois a história é provedora do background, do significado ou mesmo da mensagem que o universo artístico reflete, expressa, comunica…

Os iconógrafos são aqueles estudiosos que se dedicam a ler imagens como textos. Desta feita, torna-se possível uma história social da arte, por meio de imagens-textos que fazem as vezes de artefatos culturais. Tarefa inovadora esta, observa Randolph, captar as imagens de modo crítico. Os historiadores da cultura de há muito apontavam a preocupação com a forma e com o conteúdo, sem considerar que as propriedades formais das obras são representações das estruturas de autoridade da sociedade.

A arte é uma forma de poder e sua tarefa é mapear tais vestígios nos produtos artísticos, mediante estudos sobre os afrescos pintados por Andrea Mantegna (1431-1506) no castelo dos Gonzaga, em Mântua. Os quadros ocupam duas paredes adjacentes (norte e oeste). O teto da sala conhecida como Câmara Nupcial (Câmera degli Sposi) foi construído ao longo de uma década, entre 1465 e 1474.

Untitled

Naquela época, o ambiente fora usado como salão de audiências e quarto de dormir. Trata-se de um ícone famoso da cultura material do Renascimento, bem como uma deslumbrante exibição das pretensões políticas e culturais, expressas nas formas pictóricas. Os afrescos expõem cenas da corte de Ludovico e de Bárbara Gonzaga e suas ilustrações são modelos do quadro, visto enquanto janela para uma teoria da arte renascentista.

As imagens convidam a olhar para um "outro mundo", através da superfície pintada, coextensiva, mas necessariamente diferente de seu original.A principal façanha do autor é apontar para um desvio: das habilidades artísticas para os arquivos e para as circunstâncias a que está relacionado.

Quais os efeitos do teto pintado? Primeiramente, realçar a abóbada de complexa arquitetura, centrada no óculo aberto a um céu matutino imaginário. Outro efeito incide na decoração, com a exposição de medalhões de antigos imperadores e de cenas da mitologia clássica em mosaico.

Randolph oferece um exemplo do repertório renascentista e dos efeitos pictóricos. Temos também uma reflexão sobre o ato físico de olhar, com o contraste entre a parte inferior da sala – ambiente cortesão palaciano, voltado para a atividade pública, premeditada, masculina – e a parte superior – região da despretensão, da inspiração e da aprendizagem. Por isto, é feminina, angelical, exótica e antiga. Os ângulos contrastivos tornam-se lados complementares de uma aventura intelectual inusitada, a ponto de levar a sério uma "vida ativa das paredes", uma "vida contemplativa do teto".

A parte de cima inspira, legitima e aperfeiçoa a atividade de baixo. As duas representações são plausíveis, porém não infalíveis. A questão do autor oscila entre aquilo que representa versus o modo como o representa. Os modos como olhamos são aqui ineditamente elementos da cultura política da corte renascentista. Seu ponto de partida, as reações do quadro sobre o observador.

Destacam-se para tanto três tipos de atenção visual: o Relance, a Visão Calculada e o Olhar Perscrutador. O endereçamento do olhar supera, em termos históricos, o românico e o gótico do período medieval, e ultrapassa a influência da arte bizantina, com suas iluminuras e seus vitrais.

 

11 Informações Históricas para Entender o Capítulo de Randoph Starn

1. O "outro" para o europeu era o árabe, o bizantino e o eslavo. Com a descoberta das Américas, depara-se com o índio, com o selvagem: sem fé, nem lei, nem rei…

2. 1453: ano da tomada de Constantinopla pelos turco-otomanos. Está obstruída a principal via de acesso ao Oriente; inventa-se a pólvora, a bússola e a imprensa; desenvolvem-se a cartografia e a astronomia; Johannes Gutemberg surge em paralelo à Escola de Sagres; pilotos italianos sorvem conhecimento náutico dos árabes; do sistema de Ptolomeu chega-se ao sistema de Copérnico; eis a revolução copernicana.

3. No Renascimento, o homem se diviniza e Deus se antropomorfiza. O Renascentista opõe o homem antigo da Grécia clássica ao homem velho da Idade Média, com o alargamento das fronteiras imaginárias do mundo. Os Estados absolutistas lançam suas empresas navegadoras em busca do mar para uma disputa pelo comércio das especiarias e, depois, de metais preciosos. Origens do mercantilismo e do absolutismo.

4. Com a invenção da imprensa, surgem os primeiros poetas das línguas nacionais, ou seja, aqueles que juntam o latim escrito com o latim vulgar, falado pelo povo, dando origem ao português, ao espanhol, ao francês, ao italiano. A universalidade moderna é plural, enquanto a medieval é homogenizadora.

5. Binômios chaves da época: espaço e tempo; universal e particular, teologia metafísica e ciência, cosmopolita e provinciano, finito e infinito, conceito e realidade, essência e existência, divino e humano, corpo e alma.

6. O historiador neerlandês Johan Huizinga, em O outono da Idade Média (1924), foca duas regiões europeias em seu estudo magno: os Países Baixos e a Itália mediterrânea. Ele defende a ideia de que no mesmo período de ascensão do Renascimento italiano, a região norte da Europa vivia um período de declínio, daí a sua metáfora outonal do fim de um ciclo histórico.

7. Cenários dos séculos XIV e XV: fome, epidemia e guerra – santa trindade; fortificar os Estados para fazer frente à iminência da guerra. A Peste Negra de 1347 dizima um terço da população europeia. Guardadas as devidas proporções, lembre-se que a peste bubônica que também assolaria o Rio de Janeiro no início do século XX.

8. Falar em Europa deveras é complicado, pois supõe uma unidade inexistente, envolta em uma diversidade de regiões.

9. Caracterização da época como triste e desgraçada. Isto se deve a problemas relativos à demografia, à produção agrícola, ao abastecimento e à alimentação. Pouco a pouco, no entanto, o espírito humano assiste à evolução material.

10. Os dilemas do mundo interior continuam afugentando o homem, mas com o tempo as proibições tradicionais dão lugar às novidades espantosas. Homens de negócios postam-se lado a lado com homens de gênio e com homens de Deus; a razão abstrata assoma-se ao cálculo e à perspectiva.

11. Quatro obras de notáveis intelectuais avultam no Renascimento: "O elogio da loucura", sátira de Erasmo de Roterdã; "A utopia", de Thomas Morus; "O príncipe", de Maquiavel; e "Ensaios", de Michel de Montaigne.

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.