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GV CULT - Criatividade e Cultura

A história da arte na definição do Renascimento (III)

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14/10/2014 09h00

Por Bernardo Buarque de Hollanda.

A historiografia contemporânea postula três teorias principais para explicar o advento dos Tempos Modernos: a primeira seria a expansão marítima, comercial e colonial empreendida pelos reinos de Castela e Portugal nos séculos XV e XVI, com o deslocamento do eixo econômico do Mar Mediterrâneo para o Oceano Atlântico; a segunda teoria considera a passagem do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista operada no campo e nas emergentes cidades da Europa; a terceira põe em relevo as grandes invenções, como a imprensa, a bússola e a pólvora, além das ideias humanistas e renascentistas que se irradiaram da Itália.

Ao invés de se excluírem, as três teorias explicativas configuram um conjunto de fatores que ajudam a compreender o surgimento dos Tempos Modernos, sendo esta entendida como uma nova forma de ser e de estar no mundo. Nos dias de hoje, baseados na obra de Ferdinand Braudel, os historiadores sustentam que o ritmo da História não é unívoco, mas plural. Ele está sujeito, portanto, a mudanças lentas e profundas, longas e invisíveis, de um lado, e a transformações decorrentes de acontecimentos abruptos, repentinos, que se tornam grandes datas na memória coletiva, de outro.

Ainda assim, grandes questões se colocam para a compreensão de um novo período histórico: A) Como situar os Tempos Modernos: segundo invenções, ideias e descobrimentos ou segundo processos e transformações conjunturais? B) Como é possível pensar a relação de continuidade e de ruptura com a Idade Média? O final da Idade Média significa o fim do feudalismo ou o fim da hegemonia da aristocracia? C) Os Tempos Modernos são uma totalidade coerente ou um conjunto de eventos paralelos, desarticulados entre si? O que prevalece: o sistema ou a aleatoriedade? D) O Renascimento constitui uma época ou um movimento cultural? Foi ele dominante ou teve apenas uma incidência pontual frente a outros universos mentais, como o de católicos, protestantes, humanistas e aventureiros? Neste sentido, como se articulam o Humanismo e as artes plásticas?

A seguir, vamos nos concentrar nas questões expostas, procurando articular os diversos Humanismos existentes na Europa do período com aquilo que se entende como Renascimento.

Uma primeira pergunta a que se propõe responder é: quem foram os Humanistas? De maneira direta, é possível responder: foram indivíduos do século XIV empenhados em modificar o padrão de estudos vigentes nas Universidades medievais (Coimbra, Oxford, Bolonha e Sorbonne), dominadas pela Igreja. Os membros desta poderosa instituição se dedicavam a estudar medicina, direito e teologia, e apresentavam uma visão estática, dogmática e hierárquica do mundo, condizente com a Europa feudal.

Os estudos humanísticos surgiram articulados a uma reforma educacional, com a preocupação centrada nos estudos de Poesia, Filosofia, Matemática, Retórica e História. Os humanistas se propuseram ao domínio perfeito das línguas clássicas (latim e grego), sendo seguidas pela aprendizagem do árabe, do hebraico e do aramaico. Tal gênero de estudo levou aos textos de autores da Antiguidade no original, sem a intermediação dos manuais canônicos medievais.

A inspiração na cultura antiga levou ao Antropocentrismo, mediante o estudo das ideias que antecederam o advento de Cristo – paganismo –, enquanto a Igreja considerava exclusivamente os textos que sucederam a Era Cristã. Os humanistas não eram ateus, mas cristãos desejosos de interpretar as mensagens do Evangelho à luz de suas experiências mais originais. A pesquisa desses textos levou a uma exaltação dos valores individuais, nos feitos, na vontade e na ação humana, com a descoberta de que também o Homem é portador de energias criativas ilimitadas, tais como ação, virtude e glória.

A imitação dos Antigos não significava volta, regresso ou repetição das formas de vida, com a idealização de uma "idade de ouro" greco-romana, mas servia de fonte de inspiração para um novo momento que seria realizador, empreendedor, inaugural.

Petrarca (1304-1374) foi um dos primeiros poetas inspirados nesses exemplos Antigos. O desejo de ler os textos originais levou-os a preferir o latim clássico ao latim desgastado da Igreja. Os estudos de Filologia e de Linguagem levam os humanistas a estudar a História e as características da sociedade em que viviam aqueles homens das civilizações mais antigas. Da Filologia passa-se a um interesse pela História e pela vida. Este é um ponto de partida para despertar a curiosidade também pelas línguas faladas nas cidades, o que o leva a um interesse pelo mundo contemporâneo. As línguas nacionais passam a configurar os estados monárquicos unificados.

Depois de responder quem eram os Humanistas, cabe perguntar: o que criticavam? Quem eles criticavam?

Quando se considera a cultura religiosa de então, é possível dizer que, enquanto os humanistas se voltavam para a crítica filológica, para a crítica cultural e para a crítica histórica, tornando-se mais sensíveis às variações e às mudanças, os teólogos tradicionais não consideravam a mudança. Segundo a visão destes, o homem e a alma humana na terra optam entre o bem e o mal, que o levará ao Juízo Final, depois da vinda de Cristo, e destes a um regresso ao Paraíso Perdido. Em contraponto aos que se preocupavam com o espiritual e com o transcendente, exaltando os valores da piedade e da disciplina, os humanistas, ao estudar as línguas, começaram a se interessar pelo homem, pelo meio social, pela natureza, acentuando um aqui e agora. O ser humano continha o divino dentro de si, sua força criativa, expansiva.

Se os Humanistas foram de início um grupo de eruditos seletos no corpo fechado das universidades, suas ideias acerca dos novos valores e comportamentos começaram a se expandir nas cidades, entre professores e estudantes, clérigos e cientistas, poetas e artistas. Um certo inconformismo se disseminou e mesmo sem ser bem visto pela tradição religiosa, esses homens progressistas atuaram no seio da Igreja, em torno do papa, que na época atuava como um Estado. Espécie de conselheiros, esses pensadores e homens originais passaram a se associar aos papas, aos príncipes, às universidades, às famílias burguesas, como forma de buscar proteção e tutela.

Uma terceira questão a se considerar é a seguinte: quais os tipos de reações sofridas pelos humanistas em face de suas posturas críticas?

Numa palavra, pode-se dizer que foram as perseguições. A liberdade de pensamento e a postura independente também resultaram em drásticos acontecimentos, como o exílio de Dante e Maquiavel de Florença; a tortura e a prisão de Campanella e de Galileu, o enlouquecimento de Da Vinci, a morte de Giordano Bruno, levado à fogueira pela Inquisição, entre muitos outros.

A perseguição e a insegurança por sua vez criaram uma rede e um sistema de solidariedade entre esses estudiosos, que se correspondiam por meio de cartas e recebiam-se uns aos outros de maneira hospitaleira, de modo que isto possibilitou também que as ideias que floresceram inicialmente nos limites das universidades e das cidades italianas se espalhassem por boa parte da Europa.

Por fim, cabe perguntar: é possível pensar no Humanismo de uma maneira unificada?

Não, a universalidade e a rede internacional criada por estes humanistas não corresponderam a um programa único, muito menos unificado, o que é possível perceber na sucessão de autores provenientes das mais diversas latitudes europeias: Marsílio Ficino (1433-1499), Erasmo de Roterdã (1466-1536), François Rabelais (1483-1553), Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) e Thomas More (1478-1535). A ênfase no indivíduo e na individualidade resultou em diferentes pontos de vista acerca da representação da natureza humana. Isto porque a filiação à tradição antiga era distinta (Platão e Aristóteles), assim como a temática (natureza, cosmo, história) e a utilidade prática (política, científica, religiosa).

Uma das escolas humanísticas mais poderosas teve como berço a cidade de Florença, onde se criou a Academia inspirada em Platão. O platonismo consistiu na exaltação de um espiritualismo que se ligava à produção artística e cultural. Nicolau de Cusa, Pico Della Mirandola e Ficino faziam de suas obras uma espécie de filosofia da beleza, em que a manifestação do Divino e a adoração a Deus se fazia por intermédio do belo, da arte e do sublime. Para isto, não bastava a imitação técnica da natureza, mas a busca da perfeição absoluta, que só se dava com o conhecimento das leis naturais que possibilitavam tal perfeição. Para se chegar à harmonia, era necessário estudar matemática, a ciência da exatidão.

Em paralelo à Academia de Florença, que se voltava ao espiritual e ao artístico, havia a Escola aristotélica de Pádua, com intelectuais ligados à república de Veneza, região com menos influência da Igreja, onde se desenvolveram estudos práticos sobre medicina, anatomia e vários fenômenos naturais, com menos preocupação teológica. O Aristóteles de Pádua não era o mesmo do aristotelismo de Tomás de Aquino, muito famoso nas universidades europeias, com suas classificações de História Natural. Eles se associavam ao Aristóteles estudado pelo comentador árabe Averrois (1126-1198). Ali se formaram Nicolau Copérnico (1473-1543) e Galileu Galilei (1564-1642). Esta Escola rompeu com a ideia de milagre, de imortalidade e de criação, defendendo a supremacia da razão.

Se não podemos ainda falar em um conhecimento científico, os questionamentos e as especulações teóricas logo passam a conviver com conhecimentos práticos e instrumentais. Na Astronomia, passa-se do modelo teocêntrico de Ptolomeu para o heliocêntrico de Copérnico e Tycho Brahe (1546-1601) e, destes, a Galileu e a Johannes Kepler (1571-1630) no século XVII. A dissecação de cadáveres permitiu as pesquisas anatômicas, como as feitas por Da Vinci, que conduziram ao estudo da circulação sanguínea. A mineralogia, a hidráulica e a arquitetura assistiram a notáveis avanços nesse momento.

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.