Afinidades Eletivas
Por Vítor Steinberg.
"Afinidades eletivas" é o título de um romance de Goethe escrito em 1809. A história se atém sobre Eduard e Charlotte – um casal elegante e aristocrático que vive numa propriedade rural idílica, porém vivem entediados. Mas a relativa paz de sua existência é posta à prova quando a presença de dois visitantes – o Capitão e Ottilie – faz despertarem reservas magmáticas de atração sexual e amor proibido.
Com o título inspirado pelo princípio da química a respeito de certos elementos que são atraídos para outros, e com uma temática calcada na própria biografia sentimental (e conflituosa) de Goethe, este romance é um dos triunfos supremos do romantismo. Permanece, mais de duzentos anos depois de sua publicação original, como um estudo profundo sobre amor e destino. Um objeto literário encantador e meditativo sobre como somos arrastados pelas paixões.
Gostaria de traduzir as "afinidades eletivas" para o eleitor afetivo. "Princípio da química a respeito de certos elementos que são atraídos para outros"… Qual é a nossa verdadeira afinidade eletiva? Não sei se o Brasil espera o retorno de Jesus ou, por ser virginiano, só vai para frente quando está em crise.
Praticamente, as pessoas são na tela – se boas e sinceras – o que são na vida. Talvez uma grande arte deva ser mais do que uma arte de transposição. É algo possível.
Os hinduístas possuem a extrema felicidade, por sua religião, de não terem definido expressamente a diferença entre o domínio espiritual e o domínio material. Não se sabe direito onde começa a divindade e onde começa o ser humano. Não se sabe direito e os mortos viveram ou não. Não se sabe o que é lenda, o que é história, o que é realidade. Essa confusão pode ser perigosa para os eleitores de São Paulo.
Os hinduístas ortodoxos estão absolutamente convencidos de que não existimos, que nossos pensamentos são os resultados das inspirações e respirações do Brahma e que o mundo como o vemos não passa de mero produto da nossa imaginação.
No cinema, essa diferença entre o sonho e a realidade também é bastante indefinida. E como o hinduísmo, que exige exercícios físicos determinados, é uma religião prática. É um ofício que se realiza com lâmpadas, câmeras, cartões SD, um ofício em que os problemas materiais têm uma grande importância.
Sempre se começa por sonhos imprecisos. Em seguida, se enquadram esses sonhos na realidade; e antes da conclusão do filme, é a realidade que prevalece. Os atores nos conduzem de volta à terra e permitem entreabrir um canto da cortina que separa o sonho da realidade.
Como todos os sonhadores – ou seja, como todo mundo, pois todo mundo é sonhador – acredito que, no final das contas, a realidade vale mais do que o sonho. Oferece mais fantasia. Não há sonho que possa nos proporcionar os milhares e milhares de aspectos diferentes que nos oferece qualquer fato distinto. As manifestações de ação, as complicações das pessoas, os dramas que se desenrolam nas casas vizinhas, todas essas coisas são muito maiores do que tudo o que se encontra em qualquer filme, quadro ou romance. Mas só adquirem o poder de nos emocionar depois de digeridos e recriados por um artista.
A vida é muito mais variada do que os sonhos, mas é também mais desordenada. Os sonhos se desenrolam numa espécie de ordenamento bastante estranho: parecem fabricados por geômetras. Já a vida não é fabricada por geômetras. É inverossímil: há altos e baixos, vais e vens, eleições, quase não há nuances. É uma tremenda confusão!
A nós, que pretendemos ser artistas, que tentamos sê-lo, humildemente, a nós cabe ordenar essa confusão. Conferindo à realidade selvagem a ordem dos nossos sonhos mais secretos.
Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.
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