A história da arte na definição do Renascimento (I)
Por Bernardo Buarque de Hollanda.
Segundo Jean-Pierre Poussou (2002), Renascença não representa um corte cronológico neutro. Trata-se de um conceito historiográfico lentamente forjado pela crítica artística e histórica desde antes do século XVI, prolongando-se até os dias de hoje, em torno do qual visões contraditórias continuam a se confrontar.
Assim, é possível dizer que a Renascença é um conceito originalmente emprestado das artes e de sua evolução. Uma das primeiras tentativas de conceituá-la ocorre com Giovanni Boccaccio (1313-1375), ainda no século XIV. Para este humanista, o « despertar » das artes data de Dante (1265-1321) – restaurador da poesia – e de Giotto (1266-1337) – restaurador da pintura. A poesia e a pintura foram a glória da Antiguidade, reencontradas entre os séculos XIII e XVI, fenômeno que se estendeu às letras, às artes e à cultura em geral.
Cerca de dois séculos depois de Boccaccio, Giorgio Vasari (1511-1574), pintor e escritor de talento a serviço de Cosme I (1519–1574) de Médici, grão-duque da poderosa dinastia familiar de Florença (1360-1675), postula que a Renascença é um todo orgânico, movimento de progresso rumo à arte perfeita, que culminaria na obra de seu contemporâneo Michelangelo (1475-1564). O desenvolvimento da arte compreenderia etapas biológicas, como crescimento, maturidade, declínio e morte.
A definição corrente de Renascença remete então ao florescimento deste largo movimento de renovação que restitui o antigo esplendor das artes na Antiguidade clássica. Vasari sustenta uma visão heroica do homem e do artista, segundo a qual a virtude transforma o ser humano em criador.
No século XVIII, os filósofos do Iluminismo, que rejeitavam o passado medieval e cristão, viram a Renascença como um primeiro passo, essencial, para a razão moderna e o mundo secular, visão porém contestada pela historiografia contemporânea, como o faz Robert Black (2006).
A etapa seguinte de cristalização e de dilatação do conceito historiográfico de Renascença remonta ao século XIX, em particular à decisiva obra de Jacob Burckhardt (1818-1897): "A civilização do Renascimento na Itália" (1860). Ao tratar da "descoberta do homem e do mundo", em capítulo cujo título toma de empréstimo a Jules Michelet (1855) poucos anos antes, o historiador da arte suíço sublinha os novos valores que rompem com a tradição medieval, a saber, o individualismo, a valorização do homem e da natureza, o reencantamento com as fontes da Antiguidade.
A sua perspectiva coloca em cena duas grandes tensões da história da arte: o formalismo e a história social da arte. O formalismo, corrente a que se filia Burckhardt, trata da relação entre a forma e uma dada época, mediante a dialética de inovação e tradição internas à arte. Ela atinge seu apogeu com Wölfflin (1864-1945), discípulo de Burckhardt, para quem a história do espírito humano é essencialmente idealista, onde o classicismo varia como um gênero e um estilo, sendo este entendido como "maneira de sentir".
O debate sobre o conceito de Renascimento se prolonga em torno de sua relação com o termo Maneirismo, estilo artístico desenvolvido na Europa entre 1515 e 1600, na condição de sucessor da Renascença. Para uma primeira corrente, o Maneirismo representa a crise e a decadência do Renascimento, fase de inquietude pessoal e espiritual, com subsequente evolução do sentimento religioso. Nesta visão do Maneirismo como desdobramento renascentista sombrio, seus sintomas seriam a tendência à interioridade e à investigação dos afetos do indivíduo.
Nessa linha, embora dizendo respeito exclusivamente aos séculos XIV e XV, e à Europa setentrional, encontra-se a obra de Johan Huizinga (1872-1945), O outono da Idade Média (1919). O historiador holandês, em princípios do século XX, caracterizaria o período por uma "melancolia" de que o Renascimento será herdeiro. A ideia de um "tempo angustiado", "atormentado", foi largamente desenvolvida e irá coexistir com a imagem clássica da Renascença como "tempo feliz de exaltação" e de "perfeição humana", conforme sublinha Alain Tallon (2002).
Em contraponto, a tradição inglesa, representada por E. H. Gombrich (1909-2001), em seu livro clássico A história da arte (1950), sustenta que o Maneirismo é expressão de um refinamento cultivado, de uma arte da glorificação depois do escândalo do saque a Roma (pelos franceses?) em 1527 e da inesperada desaparição da República Florentina em 1530, ligadas ao governo dos Médicis nos dois Estados toscanos e pontifícios.
O momento maneirista constitui para muitos a fase de autonomização da esfera artística, com a aparição de uma teoria da arte contra a qual se levantará a Contrarreforma e o Barroco. Segundo Robert Klein (1963), o Maneirismo é a « arte da arte », isto é, momento em que a relação desta com a sua própria técnica se torna objeto de atenção artística autônoma.
Além da sua ligação com o Maneirismo, outro ponto crítico da conceituação de Renascimento é o estabelecimento de uma fronteira histórica com a Arte Gótica, que a antecedeu e que ainda no século XVI era viva e presente. Em torno de 1520, a Renascença estava longe de abranger toda a Europa, na medida em que socialmente era uma expressão dos meios artísticos oriundos das elites.
Esse ponto reaviva a questão da sincronia dos estilos artísticos, sua relação com outras evoluções em curso na sociedade, bem como a noção de ritmos de sucessão temporal, com mutações lentas contrapostas, e às vezes justapostas, aos tempos curtos de que falava a história estruturalista de Fernand Braudel.
Os historiadores terminaram, assim, por definir genericamente a Renascença como o período que vai do fim da Idade Média à Reforma Católica e ao Barroco, segundo uma cronologia variante em função dos contextos geográficos e políticos. O termo designa para uns um período cronológico, segundo Poussou um mito herdado do século XIX a partir da elaboração de Burckhardt como instrumento historiográfico e ideológico, e para outros um movimento de renovação cultural e civil.
A título de exemplificação, entre os pintores do Norte da Europa, é possível citar Albrecht Dürer (1471-1528) e Hans Holbein (1498-1543), este último formado na suíça Basiléia, muito influenciado pela Itália, além de amigo de Erasmo de Roterdã. Como exemplo de artistas do Sul da Europa, pode-se mencionar Sandro Botticelli (1455-1510); Filippo Brunelleschi (1377-1446); Leon Batista Alberti (1404-1472); e Donatello (1386-1466).
A influência do estilo renascentista italiano na Europa começa a se dar com maior intensidade a partir do século XVI. O urbanismo e a arquitetura italiana são fundadores de uma nova concepção de harmonia e proporção. Na pintura, destaque-se o perspectivismo estudado por Erwin Panofski, sendo preciso insistir aqui sobre a importância pictórica de Veneza, em especial alguns dos grandes pintores venezianos quinhentistas: Ticiano (1490-1576), Paolo Veronese (1528-1588) e Tintoretto (1518-1594).
Na França, a frequência à Corte e as temporadas passadas pela elite francesa na Itália explicam a chegada da arte renascentista a Paris. Luís XI recupera a prosperidade da cidade, investindo nas artes, na arquitetura, na decoração e no vestuário. No século XVI, os reis franceses tornam-se grandes admiradores da Renascença italiana, com suas primeiras incursões no planejamento urbano, através de investimentos na elegância, na uniformidade e na abertura dos espaços, como a atual Place de Vosges, antiga Praça Real, com suas casas simétricas. Francisco I (1494-1547), por exemplo, convida Leonardo da Vinci (1452-1519) a visitar a França, ao mesmo tempo em que o quadro Mona Lisa (1502 – Louvre) é transladado a Paris.
Apesar do avanço do Renascimento, é forçoso admitir que o estilo artístico medieval – a arte gótica do fim da Idade Média – permanece vigoroso e dominante, como o mostram ainda a paisagem das cidades. Mesmo Paris e sua fisionomia, apesar dos esforços de Francisco I, não chegam a se modificar sensivelmente durante o século XVI, caracterizando-se como uma capital ainda medieval. O estilo renascentista penetra com lentidão e as criações artísticas nas províncias continuam fora da zona de influência italiana, com a preponderância dos ateliês, a exemplo da Borgonha e de Moscou, esta última caracterizada pelo estilo bizantino. As cidades permanecem fortificadas à maneira medieval. No entanto, pequenas « Venezas » surgem, como Caen e Amiens, na França.
Antes da metade do século XVI, na maior parte da Alemanha, da Europa oriental, da Holanda e da Inglaterra, a influência da Renascença é ainda pouco marcada na arquitetura e na decoração. Se a Renascença ganha rapidamente as elites das Cortes e as elites nobiliárquicas e culturais; se a invenção da imprensa com Johannes Gutenberg (1390-1468) tem um papel essencial na sua difusão, em particular no domínio arquitetônico, o vigor do gótico continua fundamental. Entre 1500 e 1560, a Europa ainda é dominada por este estilo medieval, com seus monumentos e edifícios religiosos.
É somente com o Maneirismo, a partir dos anos 1530, que o Renascimento adquire uma dimensão por assim dizer global. Este assiste ao desenvolvimento nas artes do desenho, assim como nas artes ditas menores – mobiliário, decoração inferior, artes de jardinagem e do vestir-se. É a chamada fase clássica do Renascimento.
Uma nova Era se inaugura, com novas visões – a paisagem de Flandres – novas técnicas – a pintura a óleo – e novas concepções de construção dos quadros – a perspectiva. A tecelagem, o mármore e o vitral são novos instrumentos e materiais que desempenham um papel essencial. A arte faz parte de uma visão global do mundo, da sociedade e da vida, com a elaboração na Itália de uma verdadeira teoria do artístico por humanistas como Alberti.
Se o formalismo tem um peso importante na história da arte, esta é igualmente uma história social. Neste sentido, a arte não pode ser entendida sem que se leve em consideração o mecenato de reis como Francisco I, da França, de figuras como Federico de Montefeltro (1422-1482), duque de Urbino, e dos Papas, como mostra Philippe Woff no percurso biográfico de Alberti. O mercado das artes transpõe os círculos de príncipes e da alta nobreza. A avidez por conhecimento corresponde à avidez por poder e lucro, o que se justifica pelo fato de o Renascimento ter se manifestado nas prósperas cidades-Estado italianas, onde o comércio tinha um forte papel.
Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.
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