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GV CULT - Criatividade e Cultura

Literatura oral e cultura popular – um balanço historiográfico

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05/08/2014 09h00

Literatura oral e cultura popular – um balanço historiográfico

(ou: Homenagem a Ariano Suassuna)

Por Bernardo Buarque de Hollanda. 

"Na poesia se aninha a esperança de que um dia uma palavra dirá tudo".

Paul Zumthor

"… esta glossolalia disseminada em fulgurações verbais".

Michel de Certeau

"A voz modula os influxos cósmicos que nos atravessam e capta seus sinais:

ressonância infinita que faz cantar toda a matéria…"

Paul Zumthor

 

Nas últimas décadas, em várias frentes e com distintos pressupostos, teóricos de relevo internacional ─ historiadores, antropólogos, sociólogos, hermeneutas, formalistas e linguistas ─, vêm propondo uma nova mirada para o fenômeno da cultura popular. Todos partem do princípio consensual de que não é mais possível encarar o conceito de cultura em bases dicotômicas estanques e fixas. A pressuposição de que a cultura popular não deve ser vista de modo simplista, como um contraponto antitético da chamada cultura de elite, chegou a tornar-se hoje um lugar comum.

Um longo percurso, todavia, iniciado nos anos 1970, foi necessário até que se alcançasse esse relativo consenso na atualidade em torno da complexidade da formação da cultura popular. A título de exemplo, é lícito lembrar Mikhail Bakhtin e seu inovador estudo sobre a experiência popular forjada na Europa durante o período medievo-renascentista.

Com base na obra de um expoente da literatura francesa da Renascença, François Rabelais, ele demonstrou de que maneira a comicidade, o riso, o lúdico, o jocoso e todos os aspectos relacionados à irreverência típica do carnaval obedeciam aos ritos de inversão, à vivência da transformação cíclica da estrutura social.

A revelação do avesso ritual da ordem estabelecida, em contraposição àquilo que no cotidiano era vivido como sério e distanciado, punha em foco o que ocorria nas praças, nas ruas e nas festividades públicas, dando a conhecer os mecanismos efetivos e a experiência autêntica da cultura popular, como ela se originava e como ela se plasmava ora em consonância ora em oposição com a chamada alta cultura e até com o calendário litúrgico-religioso.

A partir de personagens como Gangantua e Pantagruel, Bakhtin surpreendia na obra de Rabelais a existência de uma circularidade cultural e de uma interdependência entre vários grupos sociais, que tanto influenciavam quanto recebiam a influência do folclore e das tradições populares coletivas.

Em paralelo ao trabalho desse formalista de origem russa, em meados da década de 1970, Carlo Ginzburg, um expoente da micro-história, corrente historiográfica italiana, apresentava seu trabalho sobre o caso de um extraordinário moleiro de uma remota aldeia do norte da Itália que, no período da Inquisição durante os séculos XVI e XVII, foi submetido aos autos de investigação sob a acusação de heresia.

Ao invés de privilegiar figuras conhecidas e grandes vultos como Galileu Galilei, Ginzburg descobria fontes inéditas que lhe permitiam devassar os inquéritos de um desconhecimento camponês, aparentemente de somenos importância, revelando o dia a dia desse obscuro personagem. Ao contrário das expectativas, Menocchio era alfabetizado, leitor de obras eruditas, sejam as canônicas autorizadas pela Igreja sejam as tidas como heréticas.

Com base em suas inusitadas leituras, o excêntrico moleiro forjou sua própria cosmovisão do universo e da origem do mundo, desafiando os preceitos da Contra-Reforma então em curso, o que acabou por levá-lo a interrogatório e a execução sumária. Essa pesquisa pioneira permitiu a Ginzburg mostrar o quanto a cultura popular de uma longínqua região pode absorver influências da língua culta, da cultura oficial e das convenções religiosas e, ao mesmo tempo, até que ponto essa recepção não é passiva, sendo capaz de questionar o status quo, elaborando as suas próprias representações da vida social e da existência coletiva.

Para fins de ilustração, esses seriam apenas dois dos inúmeros autores pinçados na sociologia das culturas populares, que se empenharam em formular teorias nas quais o que se convencionou chamar popular foi reconceituado. A mesma perspectiva pode ser conhecida de uma maneira mais coesa e sistemática na obra do historiador inglês Peter Burke, intitulada A cultura popular na Idade Moderna, um panorama do processo de descoberta e invenção das tradições populares de que o romantismo alemão foi precursor no século XIX.

Esse movimento liderado por Goethe e Herder na Alemanha foi um dos mais importantes na Europa e fez intelectuais, também conhecidos como antiquaristas, passarem a valorizar o 'espírito do povo' e a 'alma nacional' na história literária europeia. No Brasil, estudiosos da geração de 1870, como Sílvio Romero, iniciaram uma série de estudos sobre a poesia popular, amparados nessa mesma missão de salvaguardar as tradições coletivas em vias de descaracterização, dando origem a uma linhagem de folcloristas que chegaria ao modernismo brasileiro com Mário de Andrade e Câmara Cascudo.

Em relação ao caso brasileiro da Literatura de Cordel, a renovação dos estudos em âmbito internacional começou ainda em fins dos anos 1960 com a abordagem do folclorista espanhol Júlio Carlo Baroja e do historiador francês Robert Mandrou.

No tocante à littérature de colportage francesa, reconhecida graças às pesquisas de Mandrou sobre os milhares de livrinhos reunidos na Bibliothèque Bleue, a história das edições e das práticas de leitura desenvolvidas por Roger Chartier demonstraria a complexidade de suas origens e de seu intrincado itinerário envolvendo a elaboração, a edição, a impressão, a difusão e a recepção entre o público ouvinte e leitor da França rural e das vilas normandas dos séculos XVIII e XIX.

Tal como os autores supracitados, Chartier partilhava a ideia de que as práticas e as representações culturais não poderiam mais ser vistas através da oposição macroscópica entre cultura popular e cultura erudita, a partir de oposições duais e de polaridades unívocas que ignoravam os intercâmbios, as imbricações e os empréstimos fluidos estabelecidos pelas múltiplas esferas da vida social.

Em suas palavras: "… o conceito de cultura popular – que forneceu as bases para os primeiros estudos pioneiros sobre os livrinhos populares – deve ser agora questionado". Esse questionamento das formas de produção mostrava em que medida os folhetos de cordel não constituíam artefatos naturais, sem intermediários, dados de antemão e cuja autoria fosse única, pura ou exclusiva. A materialidade dos cordéis atravessava uma corrente de elementos que acionava uma diversidade de agentes ─ o versejador, o tipógrafo, o editor, o xilógrafo, o vendedor e o leitor ─ e muitas alterações ocorriam nesse mosaico de interações sociais.

Chartier acentuava ainda que, longe de ser apenas espontâneas, as criações populares reuniam em si um caleidoscópio de influências, incidindo na fabricação dos textos, desde os manuais, os romances, os contos de fada até a alta literatura e os escritos religiosos. Da mesma maneira, o autor sustentava que a suposta originalidade e espontaneidade do texto devia ser relativizada, haja vista o elevado grau de intervenção editorial. O trabalho de adaptação dos editores visava quer o controle do que vinha expresso nos folhetos quer a modificação do discurso a fim de que as histórias se tornassem mais atraentes e mais acessíveis ao grande público.

As referências visuais e os artifícios mnemônicos tinham por finalidade atingir um número maior de leitores que, ao contrário das formas de leitura impostas pela norma culta, estavam acostumadas às descontinuidades e à fragmentação da narrativa. Assim, a classificação em gênero dos cordéis era uma codificação feita a posteriori,pela ação direta dos editores, o que criava expectativas e gerava demandas de interpretação, propiciando a ampliação do número de vendas e de leitores, fomentando o consumo da literatura popular.

Ao lado da discussão sobre os suportes, sobre a produção dos objetos culturais e sobre a circulação das mensagens, uma outra linhagem de estudos vai ao encontro do enfoque de Chartier. Trata-se da perspectiva inaugurada pelo medievalista suíço Paul Zumthor. Este dá ênfase ao conceito de performance, notadamente aquele relacionado à poesia oral europeia, de origem medieval, que destaca a importância da corporeidade presente em todo ato de ler em público, com a articulação entre a dimensão escrita e a dimensão falada na literatura popular.

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O traço de união entre o gesto e a fala na recitação das poesias, onde desponta o sentido cênico e teatral da cultura popular, bem como a "movência" do texto oral, recuperaria a questão da totalidade da percepção sensorial, reunindo aspectos antes isolados, fragmentados e tratados à parte, com considerações exclusivas que se atinham ao conteúdo ou ao texto gráfico em si.

Esse estudioso genebrino da Idade Média, que examinou na Sorbonne, em 1980, a tese de Idelette dos Santos sobre o teatro de Ariano Suassuna, voltava a destacar o caráter indissociável entre "a letra e a voz", entre a vocalidade da palavra e a poética vocal no Ocidente, tal como estabelecida antes da invenção da imprensa por Gutemberg. Tudo isto antes da inauguração da modernidade, que hipostasiou a dimensão grafocêntrica da literatura.

No projeto de Zumthor, esplendidamente exposto no livro "Introdução à poesia oral", publicado em português pela Editora UFMG, graças ao percuciente trabalho da pesquisadora de origem baiana Jerusa Pires Ferreira, o lugar de uma obra extrapola os limites do registro textual. Na sua poética da voz, ele passa a salientar: "a pessoa e o jogo do intérprete, o auditório, as circunstâncias, o ambiente cultural e, em profundidade, as relações intersubjetivas, as relações entre a representação e o vivido".

À luz de tais pressupostos, a abordagem diferenciada da poética popular oralizada fornece subsídios e respalda novos estudos sobre a produção da literatura de cordel no Brasil. Acreditamos que todas essas questões historiográficas, situadas nos domínios da Antropologia, da Comunicação e da História, são por demais instigantes para o entendimento da gênese, da identidade e da poiesis dos cordelistas brasileiros, bem como, em sentido mais amplo, para o avanço dos estudos de literatura oral no país.

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.