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GV CULT - Criatividade e Cultura

Atualidade da Literatura de Cordel

GVcult

15/07/2014 09h01

Por Bernardo Buarque de Hollanda. 

 "Ser poeta é ser geníaco

Sensibilante ao ouvir

As magnificências; e

Unificar concretir

Na visão imaginária

Formar, criar, colorir!"

(Manoel Camilo dos Santos – "O filho de Garcia")

 

Nas últimas décadas, um cenário curioso tem se apresentado à produção cultural brasileira, especialmente no que diz respeito ao Nordeste do país. A aura dos repentistas e a mística dos trovadores populares vêm inspirando a composição de grupos musicais formados, sobretudo, por rapazes oriundos das grandes cidades e, em particular, das classes médias.

De forma até certo ponto paradoxal, esses jovens têm procurado invocar a sua filiação às raízes regionais e sertanejas do país. Seria o caso de lembrar o movimento Mangue Beat, que durante a década de 1990 despontou no ambiente nacional mesclando o maracatu rural pernambucano e o rock progressivo internacional.

A tentativa de aproximação de tradições à primeira vista tão antagônicas pode ser percebida tanto na alcunha de seu idealizador, Chico Science, quanto na concepção do nome da própria banda: o mangue, símbolo da pobreza e da movediça geografia do litoral de Recife, aparece ao lado da beat generation, um marco da contracultura norte-americana dos anos 1960, o que parece exemplificar com propriedade as experiências de parte dessa juventude, por assim dizer, 'globalizada'.

Na esteira desse movimento, vários grupos surgiram, dentre os quais seria possível citar o Cordel do Fogo Encantado e o Mombojó, igualmente defensores da fusão de estilos, em suas tentativas de conciliar a tradição e a modernidade, o rural e o urbano, o artesanal e o industrial, numa palavra, o menestrel arquetípico do sertão e o cantor do mundo pop.

Vale ainda dizer que a presença da métrica e da rima dos cantadores repentistas no som de grupos contemporâneos não é exclusiva às capitais nordestinas e se expande também em outras áreas do país. Nas metrópoles do Rio de Janeiro e de São Paulo, é conhecida a criatividadedo universo do hip-hop que, em uma dinâmica muito assemelhada aos desafios e aos duelos descritos nos folhetins de cordel, protagonizam verdadeiras "acrobacias verbais" diante de um público participativo, galvanizado pela impressionante desenvoltura e velocidade da improvisação oral.

A associação entre os rappers e os repentistas, que poderia parecer descabida para muitos, não é estabelecida por críticos, jornalistas ou intelectuais, com suas lentes externas e com seu olhar muitas vezes 'exotizante'; são os próprios compositores da periferia carioca e paulistana aqueles que afirmam seu parentesco com as pelejas dos cordelistas nordestinos, em competições tais como "A batalha do real", filmada pelo cineasta Emílio Domingos, que costumam ocorrer no bairro da Lapa, reduto boêmio tradicional do Rio.

Assim, se no passado fazia-se o paralelo entre o samba de partido-alto do Rio de Janeiro e o repente do Nordeste, regidos pela mesma estrutura comunicativa de interpelação e resposta, hoje são jovens que assimilaram estilos de vida e vertentes musicais oriundas do funk dos Estados Unidos aqueles que curiosamente mais reivindicam a aproximação com expressões folclórico-populares consideradas típicas da brasilidade.

Sabe-se, por outro lado, que a proposição de sínteses entre tradições discrepantes entre si não constitui um fenômeno nem tão novo nem tão original assim. Quão antigas são no Brasil as polêmicas em torno de movimentos culturais que tentam fundir elementos internos da nação com manifestações de origem estrangeira! Bastaria para isso, sem recuar muito no tempo, recordar a crítica ferina de José Ramos Tinhorão à Bossa-Nova de João Gilberto nos anos 50, com sua associação entre jazz e samba de morro, entre Billie Holiday e Geraldo Pereira; ou os questionamentos sofridos pelo Tropicalismo de Caetano e Gil nos anos 60, quando de seu surgimento, pelo fato de introduzir instrumentos como a guitarra elétrica na sonoridade tradicional da MPB (Música Popular Brasileira).

Assim, não surpreende observar nos últimos anos as críticas de Ariano Suassuna ao Mangue Beat e à sua releitura das tradições nordestinas. À época em que foi secretário de cultura de Pernambuco, durante o governo de Miguel Arraes, este notável romancista, profundo conhecedor do valor histórico do cordel em suas raízes ibérico-medievais, explicitaria sua insatisfação perante os rapazes que aliavam matrizes tão díspares quanto o maracatu e o rock.

Independente das controvérsias, das preferências pessoais ou dos juízos de valor a respeito das apropriações por que passam, inelutavelmente, todas as manifestações culturais ao longo do tempo, o importante a ressaltar aqui é a influência expressiva da poesia oral e da criatividade popular na formação das novas gerações.

Acima de tudo, o recente interesse que a cultura popular vem despertando entre jovens das camadas médias e urbanas brasileiras é fato digno de nota, sintomático da sua presença instigante e inquietante no imaginário social do país. Àqueles que decantavam seu fim com o advento da cultura de massas e com a hegemonia dos meios de comunicação, eis uma evidente prova em contrário da sua vitalidade.

A força do folclore, mais do que atavismo residual, pode ser muito bem ilustrada pela presença contemporânea da literatura de cordel. Mas o que é o Cordel? Para finalizar esta coluna, recorro ao folclorista piracicabano Alceu Maynard Araújo.

CPB

Araújo, discípulo de Mário de Andrade, aluno de Donald Pierson na Escola de Sociologia e Política de São Paulo e doutor em Antropologia Social, tratou do assunto com fins didáticos na obra "Cultura popular brasileira", de 1973, reeditada em 2007 pela Martins Fontes, na preciosa coleção Raízes.

Originária das feiras nordestinas, tal literatura é encarreirada em folhetos – os cordéis, barbantes suspensos em espaço público –, divulgada em micro livros, em formato 16 por 11,5 cm, e divulgada nas concentrações hebdomadárias da população rural. Acompanhada de ilustrações xilogravadas, fixam por escrito o que trovadores cantaram e declamaram em versos orais, tradicionalmente duplas acompanhadas de voz e violão.

A batelada de opúsculos pode também, ainda segundo Alceu Araújo, ser vendida junto à banca de raizeiros. Já nas grandes cidades do Nordeste, há um pequeno mercado editorial formado ao redor desse gênero literário. Nos anos 1970, um Joaquim Batista de Sena possuía cem revendedores e agências autorizadas em todo o país, de Juazeiro do Norte a Parnaíba, de São Luís do Maranhão ao Rio de Janeiro.

O temário é o mais característico de sua plasticidade, pois abarca praticamente tudo, das façanhas míticas tradicionais a acontecimentos contemporâneos planetários, o que repele supostas limitações geográficas e provincianas da referida literatura. Tal repertório é, sem dúvida, profuso e um tanto caótico, mas Alceu Maynard Araújo não se esquiva de classificá-los em seis grupos:

  1. Desafios;
  2. Estórias relacionadas com religião, ritos e cerimônias;
  3. Banditismo (Lampião, em especial);
  4. Fatos locais;
  5. Pornografia;
  6. Temas da literatura e histórias universais.

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.