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GV CULT - Criatividade e Cultura

De coronéis e lobisomens: a obra de José Cândido de Carvalho

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17/06/2014 09h01

Por Bernardo Buarque de Hollanda. 

"Tenho uma linhagem municipal, que nem chega a estadual".

"As palavras são um negócio quase divino. Elas têm vida própria.

São safadas. Outras são ordinárias, outras já vêm de luto".

"Brasília, ministro, não tem esquinas. Não sei viver em cidades sem cotovelo".

"Eu adoro perder tempo. Tenho horror a pessoas dinâmicas".

José Cândido de Carvalho

Despedi-me na última coluna com uma referência ao escritor José Candido de Carvalho (1914-1989), homenageado da última Bienal do Livro, em edição ocorrida na terra natal do escritor, Campos dos Goytacazes. Meu ânimo em tratar dele hoje se deve ao relativo pouco reconhecimento que se tem de sua obra, publicada em vida pela Editora José Olympio, e que inclui romances, contos e crônicas.

Sua obra-prima é, por assim dizer, O coronel e o lobisomem, de 1964. Ela tipifica picarescamente a figura arquetípica do coronel na sociedade brasileira. Digo arquetípica, pois o coronelismo tornou-se um conceito e um sistema sociológico em 1948, quando da publicação de um clássico da ciência política brasileira: Coronelismo, enxada e voto – o município e o regime representativo no Brasil, de autoria de Victor Nunes Leal (1914-1985).

Nesse livro, originalmente uma tese para cátedra na Universidade do Brasil, Nunes Leal disseca em termos jurídico-culturais os arranjos em torno das eleições no país, dada a moldura institucional implantada com a Primeira República (1889-1930). O empenho do cientista político consistiu em expor, com minúcias, as teias articulatórias entre as três instâncias de poder – municípios, estados e União. Elas concorreram, ao fim e ao cabo, argumenta o autor, para a perpetuação de uma ordem oligárquica liberal, pouquíssimo republicana.

Apesar de pertencerem a estirpes intelectuais distintas, Candido de Carvalho e Nunes Leal foram homens da mesma geração. A coincidência geracional levou a algumas características biográficas que aproximam os dois autores: nasceram no mesmo ano em que eclodiu a Primeira Grande Guerra mundial, em 1914; os dois se formaram em Direito e radicaram-se na cidade do Rio de Janeiro; tiveram, afinal, quase o mesmo tempo de vida e vieram a falecer nos idos de 1980.

Ademais, ambos eram interioranos. O primeiro, campista do Norte Fluminense; o segundo, mineiro do município de Carangola, na mesorregião da Zona da Mata. Em Campos, os canaviais preponderavam na paisagem local; já na província de Minas, avultavam, entre outros, o café e o leite, produtos primários agroexportadores que caracterizaram não só a produção da localidade como exemplificaram de maneira sui generis a hegemonia de quatro décadas da até bem pouco tempo atrás chamada "República Velha".

Embora eu conserve como relíquia um exemplar da segunda edição de O coronel e o lobisomem, datada de outubro de 1965 e editada por O Cruzeiro, com tiragem de dez mil exemplares e com apreciações críticas de Nelson Werneck Sodré e Manuel Cavalcanti Proença, entre outros, minha mais recente aproximação com JCC – acrônimo de José Cândido de Carvalho – se deu com o excelente perfil publicado em 2011, pela jornalista Cláudia Nina, o ABC de José Candido de Carvalho. O livro é fonte das informações de que me abebero para escrever esta coluna.

Já a obra magna de Victor Nunes Leal (doravante VNL) eu lera durante a minha graduação em Ciências Sociais na UFRJ. Nos últimos anos, a ela retornei, como professor, para oferecê-la nos meus cursos de "Interpretações do Brasil", na Fundação Getúlio Vargas, aos alunos de Economia e de Direito.

E é com alegria que vejo a obra de Nunes Leal alcançar a sétima edição, agora pela Companhia das Letras, em reedição que preserva os prefácios de Barbosa Lima Sobrinho e Alberto Venâncio Filho, e ainda acrescenta um novo, de José Murilo de Carvalho.

Há uma diferença substantiva entre o coronel de JCC e o de Victor Nunes Leal. O primeiro almeja fazer arte, o segundo, ciência; JCC nos oferece uma ficção sobre um "oficial superior da Guarda Nacional", um coronel decadente, de nome Ponciano de Azeredo Furtado; já VNL empreende um retrato sociológico sobre o sistema de dominação coronelista, vulgarmente conhecido nas páginas escolares como "voto de cabresto".

O coronelismo sela a aliança entre o poder público e os interesses privados e é um fenômeno histórico preciso das primeiras décadas do século XX. A origem da expressão, no entanto, remonta ao oficialato miliciano do Império, criado em 1831, quando se outorga a patente de coronel aos proprietários de terra do Brasil escravocrata oitocentista.

Na escrita das obras, cada autor enfrenta evidentemente as dificuldades inerentes a seus respectivos ofícios. Quanto à imaginação ficcional, o esforço criador é descrito com excentricidade por JCC:

"Esguichei suor de chafariz para escrever as 250 páginas de O coronel e o lobisomem. Pinheirais da Finlândia e do Paraná foram convertidos em papel que escrevi e inutilizei em meus largos anos de escriturizações, virgulações e craseações. Uma guerra, uma batalha".

 

Por suposto, a humorística de JCC o diferencia da seriedade do estudo científico de VNL. Mas deste se aproxima, entrementes, quando o perfil pícaro de Ponciano agrega-se a uma crítica mais ampla à sociedade e à política, conforme pontua Cláudia Nina:

"Há que se observar que o humor, especialmente em O coronel e o lobisomem, se transforma em instrumento de crítica social e política de um mundo rural que serve de metonímia de um mundo maior, também urbano, onde o embate que se trava no campo é o mesmo, embora os personagens estejam paramentados de forma diferente".

 

Ponciano deita raízes na literatura brasileira com remissões à "dialética malandragem", presente tanto em Memórias de um sargento de milícias, de Manoel Antônio de Almeida, quanto em Macunaíma, de Mario de Andrade. Para Cláudia Nina, o coronel de JCC mescla também personagens da literatura universal e, neste rol, inclui Dom Quixote e o Barão de Münchausen.

Ponciano, neto de Simeão, de quem herdou a propriedade de terras na Campos dos Goytacazes do século XIX, fuma charuto, tem barba ruiva e apresenta estatura de gigante, com 2 metros de altura. É forte, mulherengo e tem voz grossa, caracteriza-se pela generosidade, pela rudeza, pelo delírio e pela obsessão. Conforme diz JCC sobre Ponciano em entrevista à revista Manchete: "É uma inventoria de minha lavra, uma pessoinha saída do meu pensar e do meu escrever. Mas com raízes no chão campista. Com certos orgulhos e certas rompâncias muito do meu povo".

Para encerrar esse texto que já se encomprida demais, não posso me furtar à tentação de transcrever uma pequena lista com os neologismos e com as corruptelas criadas por JCC, que fazem lembrar um João Guimarães Rosa e um Manoel de Barros.

Ei-las:

"despresença"

"tristoso"

"desimportante"

"tristento"

"desesquecido"

"recatosa"

"finalmencia lonjal"

"menasmente"

"nos dias de depois"

"outro alguém nenhum"

"de pessoalmente fui"

"meus antigante"

"pratrasmente"

"puxar os jonjais"

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.